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Virada Cultural revela agravamento da situação dos desabrigados de São Paulo

Alto número de moradores de rua, acampamento dos desabrigados no Largo do Paiçandu e escombros do edifício que foi abaixo, perto de dois palcos de viradas anteriores, deixam duas realidades: a festa e a agonia

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Por Julio Maria
Atualização:

Se em anos anteriores a festa de R$ 13 milhões conseguia se impor sobre o drama social, 2018 será lembrado pela quantidade alarmante de moradores de rua e um acampamento com 152 desabrigados no Largo do Paiçandu; 'Acho que o fato de as pessoas virem para a região central pode ter um efeito positivo para que elas vejam a dura realidade de quem mora nas ruas", diz secretário de cultura, André Sturm

Lucas Silva morava no Edifício Wilton Paes de Almeida, que desabou no centro da cidade este mês Foto: Julio Maria/Estadão

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As crianças do prédio de vidro pareciam não entender bem porque seus pais também não sorriam. Afinal, em 17 dias desde que seus apartamentos viraram pó no incêndio do Edifício Wilton Paes de Almeida, ao lado da praça em que vivem com suas famílias em barracas de plástico, aquela parecia ser a noite dos sonhos. Havia gente feliz passando ao lado dos gradios, música de três palcos se encontrando no ar, policiais militares para protegê-las de ladrões de cobertores e mais de 200 banheiros químicos na vizinhança – bem além dos dois que dividem com mais de cem adultos. Enquanto Caetano Veloso subia no trio elétrico Tarado Ni Você para descer a Rua da Consolação, elas saíam do acampamento para brincar no parque de diversões montado do Vale do Anhangabaú, anunciado com orgulho e pago com parte dos R$ 13 milhões gastos pela Virada Cultural. “Só precisamos de um cobertor”, dizia Lucas Farias, 23 anos, sentado em frente à sua barraca enquanto a mulher tentava fazer o filho de seis meses dormir. “Vai ser uma noite fria e a chuva da manhã fez tudo virar lama.”

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Banda Ira! toca no palco Boulevard São João na Virada Cultural Foto: Rodrigo Gianesi/SMC

A festa que só perde em gastos e tamanho para o Carnaval proporcionou em sua 14ª edição dois sentimentos extremos em boa parte da população que andava pelas ruas sob uma temperatura que chegaria a 9,6ºC na manhã de domingo. Apesar de atrasos e falhas de som, shows como o de Baby do Brasil, Tulipa Ruiz e Pitty na abertura de sábado; a sambista Aline Calixto às 22h; Elza Soares à meia noite; La Cumbia Negra às 11h; Fundo de Quintal às 15h; e Paralamas do Sucesso no encerramento criavam instantes em que o entorno desaparecia e o público levitava. Aline segurou uma plateia nas mãos com apenas dois músicos, La Cumbia mostrou a força de seu Caribe rock and roll, o Fundo de Quintal aglutinou uma das plateias mais envolvidas e os Paralamas deixaram que o peso de sua história falasse por si. Até que o show acaba e um pesadelo surge com força, entre um palco e outro. O alto número de moradores de rua, o acampamento dos desabrigados no Largo do Paiçandu e os escombros do edifício que foi abaixo, perto de onde ficavam dois palcos de viradas anteriores, deixam, desta vez, as duas realidades – a festa e a agonia – mais visíveis.

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Se não é um erro realizar uma Virada sem iniciativas ligadas aos desabrigados e em meio a um cenário humano tão degradado? A pergunta do Estado foi respondida pelo secretário de Cultura André Sturm: “Acho que o fato de as pessoas virem para a região central pode ter um efeito positivo para que elas vejam a dura realidade de quem mora nas ruas.”

Os Paralamas do Sucesso se apresentam durante a Virada Cultural Foto: Carla Carniel

O frio pareceu afugentar o público na madrugada. O Ira!, refazendo o disco de 1986 Vivendo e Não Aprendendo, às 4h, tinha uma plateia pequena se comparada a shows que a banda fez na Virada de outras edições. Cantada por uma voz de Nasi que não chega mais às notas, Pobre Paulista fazia seu desserviço poético: “Não quero ver mais essa gente feia / Não quero ver mais os ignorantes / Eu quero ver gente da minha terra / Eu quero ver gente do meu sangue”, dizia antes de emendar “pobre São Paulo, pobre paulista...” A alguns passos dali, Lucas Silva, 30 anos, o pobre nordestino, cuidava do acampamento do Paiçandu como um cão de guarda. “Não posso dormir, as pessoas podem nos roubar.” Mas com tanta polícia por aí? “A polícia não é para nós.”

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Gisele Aparecida durante o show de Mariana Aydar, na Praça do Patriarca Foto: Julio Maria/Estadão

Mariana Aydar fez um belo show na Praça Patriarca, com um repertório de xotes e baiões que serviriam como trilha da vida de alguém que não conseguia escutá-la por ser “andarilha demais” e estar do outro lado do Viaduto do Chá. Divorciada de um marido que flagrou com a empregada doméstica, mãe de quatro filhos, quatro anos de experiência no Japão, Gisele Aparecida, 36 anos, conseguiu erguer um cercado de papelão na Avenida São João há uma semana. Enrolada em roupas e cobertores, ela fala do ex-homem de sua vida até o choro impedir. “Não deu, desculpa.”

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A mulher de José Tomás, também no acampamento, está com três meses de gestação. Ele primeiro fica rude com o repórter, depois desabafa. “Como eles podem colocar mais de cem banheiros químicos aqui ao lado e não nos dar nenhum?” Pouco depois, não dá para ouvir o Fundo de Quintal sem lembrar de sua desesperança. “Surpreender o mal interior / Qualquer motivo pra me libertar / Enxergar o facho verde da esperança / A luz que há de iluminar / Por onde eu tenho vontade de passar.” / Colaboraram João Paulo Carvalho e Guilherme Sobota

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