Violeira desafiou mundo masculino

Helena Meirelles contrariou a família e as tradições ao escolher um instrumento "de homem" e ainda tocá-lo em estilo viril

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Por Agencia Estado
Atualização:

Os pais da menina Helena Meirelles diziam-lhe assim: "Mulher que aprende a tocar vai roçar nos homens e virar sem-vergonha." Quem conta a história é Mário de Araújo, produtor e diretor musical do primeiro disco da violonista e violeira, Helena Meirelles (Eldorado, 1993). Por esse trabalho, ela recebeu o prêmio de revelação - tinha 70 anos - da revista norte-americana Guitar Player e o convite para gravar um disco lá, pelo selo Arhoole. Olho de gringo no "exótico" tropical? Pode ser. Mas o fato é que Helena é instrumentista espantosa de um tipo de música que nem o Brasil conhece direito - as chalanas, rasqueados, polcas fandangueiras do Mato Grosso do Sul. Neta de um paraguaio dono da fazenda Jararaca, na margem da estrada boiadeira que liga Campo Grande ao Porto 15, no Rio Paraná, na divisa com São Paulo, ponto de embarque de gado, cresceu ouvindo violeiros e violonistas, boiadeiros que o avô abrigava. Diziam-lhe os pais que lhe cortariam os dedos se pegasse na viola. "Tocarei com os tocos", respondia, personalidade forte já na infância. Sozinha, olhando os primos violonistas, observava os acordes, que repetiria, e as afinações diferentes do violão pantaneiro - a afinação clássica, usada no acompanhamento, e a afinação paraguaçu, de uso nos solos. Família ausente, Helena pegava o violão do irmão e se embrenhava no mandiocal, para tocar, escondida. Tinha 8 anos quando abordou o tio Leôncio Meirelles e pediu para acompanhá-lo. O tio não acreditou: "Se não tocar direito, vai apanhar" - sempre de acordo com a narrativa do produtor Mário de Araújo. Não só a menina tocou como afinou, sozinha, o violão na paraguaçu. Pois é, a afinação de solo. Virou atração, na fazenda. Os boiadeiros paravam para ver o prodígio, que se tornou animadora dos bailes e festas da Jararaca e nas redondezas, com seus poucos 9 anos. O preconceito contra a mulher violeira não passou nem com o casamento - antes da maioridade, para sair de casa. Dois filhos depois, Helena largou o marido, que não a queria tocando, e foi viver com um violonista e violinista paraguaio, com quem teve outras duas crianças. Helena não era mulher como as outras. Além de tocar, compor e cantar, bebia e mascava fumo - coisas de homem, exclusivas deles. Assim como o comportamento foi ímpar, especial também se tornou sua música - mas os críticos da Guitar Player certamente não sabiam nem saberão disso. Nem a grande maioria do público brasileiro urbano, que também vê nela a figura estranha de mulher entrada em anos, mãe de 11 filhos, rosto vincado, trato rústico, fala abrupta, cara de índia zangada. Helena Meirelles é mais. A estrutura das composições é formal e os versos, singelos: "São quatro horas da madrugada/ O galo já está cantando/ Eu tenho de ir-me embora/ Morena, vou te dar a despedida (...)/ Se você quiser amar a outra, por mim pode/ Que eu já dei por acabado", canta, em Quatro Horas da Madrugada, faixa do primeiro disco. Mas o composto música-versos não é assim tão simples. Há pequenos detalhes - notas sustentadas, divisão interna da melodia nos compassos - que não se encontram em outros violeiros e cantores, mesmo os grandes. Helena não tem uma visão "feminina" da música de viola e suas letras falam em voz masculina - porque são os homens que cantam essas coisas de amor perdido ou despedido. Da mesma forma, seus solos são viris - o toque, com pedaço de chifre de boi servindo de palheta, coisa que, até onde se saiba, só ela usa, e que modifica o som da viola - mas guardam um sabor delicado, mais romântico, talvez mais maternal, do que o que se houve de hábito. Helena surgiu para o público urbano no programa Viola, Minha Viola, de Inezita Barros, na TV Cultura, em 1991. Durante mais de 30 anos, esteve desaparecida, sem dar notícias à família. Julgavam-na assassinada por algum preterido, no bordel em que tocava. Uma irmã a encontrou, quando, doente, tentava vir de Aquidauana para São Paulo, onde, soubera, a família estava estabelecida. Gravou mais dois discos, todos lançados pela Eldorado: Flor da Guavira (1996) e Raiz Sertaneja (1997), obras-primas que eternizam o toque e o canto de uma cultura tão viva como muito desprezada, cara do Brasil que ainda está por servir de espelho.

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