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Versos de Drummond inspiram música de câmara

No centenário do poeta, duo de voz e piano apresenta-se pela Europa mostrando que a poesia brasileira também pode servir de base para composições eruditas

Por Agencia Estado
Atualização:

Sucessivas gerações de brasileiros têm ouvido com fervor os lieder de Schubert, Schumann ou Brahms sobre versos de grandes poetas alemães como Heine e Schiller. Agora, essa relação cancioneira começa a se equilibrar. O público europeu tem a oportunidade de conferir uma expressiva amostragem da canção de câmara do Brasil, na interpretação do duo Renato Mismetti, barítono, e Maximiliano de Brito, pianista, e na melhor língua portuguesa - aquela lapidada por ninguém menos do que Carlos Drummond de Andrade e, ainda, Hilda Hilst. Trata-se do espetáculo Mundo Mundo Vasto Mundo, que homenageia especialmente o grande poeta de Sentimento do Mundo neste ano do centenário de seu nascimento. A estréia foi na semana passada em Bayreuth, na Alemanha, e até setembro o recital será reapresentado ainda em Berlim e Londres. No sábado, a apresentação foi em Viena, na Áustria. "A receptividade em Bayreuth foi bastante boa e o público pôde perceber também a grande pluralidade de nossa música erudita contemporânea", sintetiza Edino Krieger, um dos compositores brasileiros convidados a musicar os poemas de Drummond. A iniciativa é da germânica Fundação de Arte Apolo, que, graças a contribuições de executivos e profissionais liberais alemães, tem apoiado o diálogo entre diferentes culturas, estilos e linguagens musicais e poéticas. Desde 2000, a instituição vem realizando anualmente a série Poesia & Música - Sonoridades Brasileiras, com canções especialmente compostas sobre textos de poetas brasileiros - Mário de Andrade e Cecília Meireles já foram focalizados. O poeta e professor da USP Alcides Villaça é quem apresenta a poesia de Drummond aos europeus no denso e superelaborado programa deste ano, com 120 páginas impressas em alemão e inglês, no qual ainda escrevem ou traduzem renomados especialistas europeus, brasileiros e um americano. Coube à estudiosa alemã Mechthild Blumberg abordar a poética de Hilda Hilst no volume. Neste ano, os compositores Marlos Nobre, Kilza Setti e Ricardo Tacuchian, além de Edino Krieger, musicaram poemas de Carlos Drummond, enquanto Almeida Prado e a romena Violeta Dinescu compuseram sobre versos de Hilda Hilst, que representa a dicção feminina no concerto. O programa ainda inclui a composição Poema de Itabira, escrita na década de 40 por Villa-Lobos, originalmente para voz e orquestra, sobre o poema de Drummond Viagem na Família, e cinco canções do brasileiro Alberto Nepomuceno, compostas por volta de 1890 sobre versos do austríaco Nikolaus Lenau, cujo bicentenário de nascimento também se comemora. Segundo os compositores convidados, presentes à estréia em Bayreuth, a iniciativa é também louvável por suscitar uma atualização de nosso repertório do lied, gênero que teve como berço a Alemanha e no qual o Brasil acumula respeitável tradição. No lied - "monumento fantástico do espírito criador coletivo", conforme Krieger - poesia e música costumam formar uma unidade perfeita. Eis por que sua renovação com base em nossos grandes poetas vem sendo incentivada por Renato Mismetti e Maximiliano de Brito, músicos brasileiros radicados em Bremen e co-fundadores da Fundação Apolo, da qual o primeiro é atualmente diretor artístico. "Uma das propostas é reunir novamente emoção e razão na música erudita", resume Mismetti, principal articulador do projeto. "Por isso escolhi o Canto Órfico, de Drummond, como fio condutor de todo a dramaturgia do programa deste ano." Afinal, conforme o mito, é o canto que reunifica o corpo dilacerado de Orfeu. Todos os compositores convidados têm larga experiência em compor sobre textos de nossos mais importantes poetas. Kilza Setti já musicara Drummond na década de 80, tendo dele recebido carta bastante encorajadora. Anteriormente, recebeu o primeiro prêmio, com uma composição sobre versos de Hilda Hilst, em concurso que teve o poeta Manuel Bandeira no júri; e, no ano passado, participou da série Sonoridades Brasileiras na Europa com a tradução musical de poemas da alemã contemporânea Margret Hölle. Ainda assim, considerou "um desafio" o trabalho de agora, sobre um tríplice ciclo de canções escolhidas por ela mesma: Canção Amiga, Canção para Ninar Mulher e Canção para Álbum de Moça. Em composições bastante aplaudidas, oscilou entre o hino eloqüente e o reaproveitamento de formas populares, como o lundu. Paráfrase musical - Os demais poemas foram escolhidos pelo próprio Mismetti, com o objetivo de representar os múltiplos aspectos da poética de Drummond, desde o lúdico e o filosófico, o irônico e o elegíaco. Ricardo Tacuchian musicou três cantos do poeta a partir do "sistema T", criado por ele mesmo, em soluções de paráfrase musical ou de exploração do caráter folclórico de alguns versos. "Um dos aspectos mais fascinantes em musicar Drummond é que ele, apesar do sotaque do interior de Minas Gerais, consegue abordar como poucos questões da natureza humana que são universais", diz o compositor. Edino Krieger optou por reinventar a musicalidade latente em três sonetos do poeta: Carta, Legado e Os Poderes Infernais. "Eu apenas me deixei levar, uma vez que nesses poemas poesia e a música subjacente já formam uma unidade perfeita", resume. O compositor, que conviveu com Drummond quando trabalhava na Rádio MEC, no Rio, diz ter sentido o poeta como virtual "parceiro". Krieger também aplaude o projeto Sonoridades Brasileiras: "É preciso salientar que o dedicado empenho de Mismetti e Brito em divulgar na Europa a poesia e a música erudita brasileiras extrapola em muito a condição de artistas interessados apenas na própria carreira. Esses concertos deveriam ser apresentados também no Brasil", sugere. Por sua vez, Almeida Prado, que musicou três poemas de Hilda Hilst - Se não Vos Vejo, Iniciação do Poeta e Há tanto a Te Dizer agora -, recorreu a diferentes linguagens, como a tonal, a modal e a atonal, com o intuito de capturar "a intensidade, o misticismo e o caráter metafísico" dos versos. "Deleguei ao piano não apenas um papel de acompanhamento, mas de criador de atmosferas e de paisagens sonoras, em conformidade com os textos." Foi, por sinal, com uma composição sobre versos de Hilda - de quem é parente - que Prado ganhou um importante prêmio ainda na década de 60, o qual lhe possibilitou passar quatro anos na Europa estudando com mestres como Olivier Messiaen. Hilda Hilst não pôde comparecer aos concertos deste ano na Europa. Quanto a Drummond, parece inegável que também ele os aplaudiria. Afinal, em carta sobre as composições até então feitas sobre seus versos, dirigida ao professor Luís Milanesi, da USP - que também colaborou com o projeto Sonoridades Brasileiras deste ano -, ele confidenciou mais ou menos o seguinte: "Se eu não subir aos céus nas asas da poesia, subirei nas asas da música (e não é a mesma coisa?)."

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