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Vanguarda do jazz desembarca em São Paulo e Rio

Encabeçada pelo saxofonista veterano Archie Shepp, para quem o hip-hop é parte da revolução permanente da música negra, a mais ousada corrente do gênero na atualidade chega ao Brasil

Por Agencia Estado
Atualização:

O som e a fúria. É assim que o saxofonista Archie Shepp, de 64 anos, é definido em reportagem de capa na revista Jazz Times deste mês, uma das mais influentes publicações do jazz. É uma definição adequada para um homem que faz discos intensamente apaixonados e de grande delicadeza e ao mesmo tempo bate-se com vigor - há quatro décadas - contra a exclusão racial nos Estados Unidos. Archie Shepp é o veterano, a atração estrelada e erudita do Chivas Jazz Festival, que começa na quarta-feira no Directv Music Hall, às 21 horas. Trata-se de um ousado encontro de emergentes e revelações desse gênero que todo ano produz centenas de novos talentos, seja na academia e conservatório ou nos bares americanos. A novíssima onda do jazz pós-fusion. O militante Shepp, pontifica pelo currículo, já que tocou nas bandas de John Coltrane e Cecil Taylor, é dramaturgo e também professor universitário. "Eu era muito jovem naquele tempo, e acho que o que mudou em minha carreira desde então é a experiência, claro, e também a atitude política, que amadureceu e tornou-se mais consistente", disse o saxofonista, em entrevista ao Estado, por telefone, de Paris. Mudou a atitude e mudou o mundo, e Shepp parece que se adapta continuamente a ele. "Acho que o hip-hop é parte da revolução permanente da música negra americana", diz o artista. "Embora musicalmente seja uma expressão conservadora, politicamente é um grande canal de comunicação e de expressão, é música feita com o corpo." Nascido em Fort Lauderdale, na Flórida, ele foi apresentado à música pelo pai, colecionador de discos de swing e canções folk. "Em essência, pode-se dizer que a minha primeira inspiração é o blues", ele diz, acrescentando que o primeiro instrumento que ganhou na vida foi um banjo. Quando tinha 16 anos, costumava tocar numa banda de rhythm and blues chamada The Jolly Rompers. Foi o trompetista Lee Morgan quem o dirigiu em direção ao jazz. Costumavam ensaiar juntos, com Shepp ao piano, e foi assim que o saxofonista repassou o repertório básico do gênero, deixando-se seduzir definitivamente - embora ainda tenha feito algum esforço para tornar-se advogado. Em 1957, durante um período de férias em Nova York, ele viu John Coltrane no Five Spot, tocando com Thelonious Monk. A história que o Archie Shepp conta é fenomenal. Ele tinha apenas 20 anos, e aproximou-se do mestre dizendo que viera da Philadelphia e queria saber se ele poderia dar-lhe uma lição. Coltrane sorriu e escreveu nome e endereço num pedaço de papel, convidando o jovem músico a ir à sua casa. "No dia seguinte, eu cheguei ao lugar bem cedo", conta. "Não me ocorrera que ele tinha me dado aquele autógrafo às 5 da manhã, e como ele tinha o hábito de chegar em casa e praticar até dormir, não tinha dormido muito aquela noite", lembra. Ainda assim, a mulher de Coltrane convidou o jovem para entrar e esperar o marido acordar. "Ele só levantou à 1h30, mas eu esperei pacientemente", diz. Quando Coltrane chegou, Shepp lembra que só então teve consciência de quão grande era o músico (em altura mesmo). Ele começou a ensaiar. Quando sorria, mostrava dentes apodrecidos, com exceção dos caninos, observou o jovem. "Era maravilhoso que tocasse tão bem, porque ele tinha estado sempre em dor", conta, relembrando que naquele momento Coltrane estava tentando largar as drogas. "Seu saxofone estava mentindo sobre o sofá", diz. Após tocar cerca de dez minutos ininterruptamente, Coltrane parou e disse: "Pode fazer isso?" Shepp entendeu que o mestre o estava testando e disse que não, que não tinha atingido aquele nível ainda. Coltrane pediu que tocasse algo. "Pelo resto daquele dia, conversamos sobre técnicas, harmonia e seus músicos favoritos, que eram Miles Davis, Thelonious Monk e Art Tatum." Com Coltrane, Shepp gravou os seminais álbuns Four for Trane, A Love Supreme e Ascension (1965). Só isso já bastaria para recomendar o concerto de quarta-feira. Mas seu conceito de arte em movimento, que o leva a rejeitar a noção de jazz como um gênero "clássico", merece ser visto a cada dia, porque a cada dia é uma coisa nova.

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