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Uma Elis Regina pop canta ´com o sol na cabeça´

Cantora tem a última entrevista e o último álbum em edição dupla com CD e DVD

Por Agencia Estado
Atualização:

Pela atualidade dos temas e pela clareza de raciocínio com que são tratados, é recomendável que algumas novas cantoras (e as veteranas também) assistam aos depoimentos de Elis Regina (1945-1982) para o programa Jogo da Verdade, que a TV Cultura gravou no dia 4 de janeiro de 1982. Devem tirar dali umas boas lições sobre coerência na condução da carreira e exemplos de firmeza de caráter, além de entender como funcionava a conturbada relação entre gravadoras e artistas , no momento em que se difundia a produção independente em São Paulo. O material agora está acessível em DVD da Trama, como bônus do CD Elis (originalmente lançado pela EMI em 1980), que volta em edição de luxo e remasterizado. Além de bônus instrumentais e versões a capela - o que reforça todas as qualidades da grande intérprete, que nunca precisou de ferramentas como os pro-tools de hoje para afinar a voz -, o CD também traz as faixas originais com alguns segundos a mais, sem os cortes impostos pelos limites de espaço dos antigos LPs. Em janeiro, quando se completam 25 anos de sua morte, o álbum também será relançado em vinil com reproduções de reportagens da época a seu respeito encartadas. Projeto foi realizado pelo filho da cantora "Parece que a entrevista foi gravada ontem", diz o produtor João Marcello Bôscoli, filho da cantora e responsável pela edição de Elis Edição Especial, como foi intitulado o projeto. Gravado 15 dias antes de sua morte, o Jogo da Verdade registrou a última entrevista de Elis, em que falou também do primeiro álbum (Viva a Brotolândia, de 1961); das restrições de acesso da população aos discos, que sempre custaram mais do que deveriam; e das novidades na música alternativa feita em São Paulo, elogiando Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção (1949-2003) e Tetê Espíndola. "Itamar é um pessoa que me chamou muito a atenção. O Arrigo antes", comenta, dizendo que tinha delírios ao ouvir Sabor de Veneno. "A função do intérprete é procurar autores, porque inclusive é questão fundamental até para a própria sobrevivência da gente", afirma. Nem por isso, como se esperava de uma notória "descobridora de novos talentos", se sentia na obrigação ou à vontade para gravar Arrigo. "Por que eu vou diluir o negócio dele? A gente tem que sacar o peso que a gente tem de cultura oficial, ainda que não se considere e não seja efetivamente, e não vá colocar um aval equivocado no trabalho de um cara", diz. "Deixar esse negócio explodir (...) vai abrindo brecha pra gente que está inconformada, mas também não tem muito o que fazer. Porque eu também virar marginal de repente, vai ficar estranho. Neguinho não vai acreditar." Elis rejeitava não só Viva a Brotolândia como também o segundo LP (Poema, de 1962), que a Som Livre vai reunir num box como fez com os primeiros de Chico Buarque. Aos 16 anos, não teve muita escolha quando convocada pela gravadora Continental para ser "a Celly Campello deles", fazendo frente à concorrente EMI, da qual a original era contratada. O que a deixava mais nervosa era o fato de ser "uma segunda pessoa". "Com relação ao repertório não sei se é bom ou ruim, acho gostoso." João Marcello lembra que o trauma dos dois primeiros discos, segundo a própria Elis confessou a ele, "deu força para ela nunca mais fazer nada em que não acreditasse". Disco coincide com abertura política Portanto, assumiu de cara limpa o derradeiro trabalho, quebrando a expectativa de um público que a via como a influente porta-voz da esquerda, muitas vezes censurada. Na época ela tinha contrato com três gravadoras e devia um disco para a EMI. Lançado no mesmo ano de Saudade do Brasil" (Warner), Elis mostrava uma faceta mais pop/funk da cantora. Passada a barra-pesada dos anos 70 e coincidindo com os primeiros sinais de abertura política, Elis cantava com "o sol na cabeça". Por isso foi criticada por uma parcela de "xiitas", como diz Bôscoli, por ter gravado Guilherme Arantes (Aprendendo a Jogar e Só Deus É Quem Sabe) e letras mais amenas como a de O Trem Azul (Lô Borges/Fernando Brant) e Nova Estação (Thomas Roth/Luiz Guedes), embora não tão alienadas quanto parecia, porque procurava "disfarçar essa mágoa que anda solta no ar". Gravou também os recém-descobertos Jean e Paulo Garfunkel (Calcanhar de Aquiles) e duas de um de seus prediletos, Gilberto Gil (Rebento e Se Eu Quiser Falar com Deus). "Elis não achava esses compositores menores, as pessoas é que achavam", defende Bôscoli. "Ela mudava muito, caminhava de acordo com a evolução pessoal dela; ao contrário de outros que encontram uma fórmula e repetem essa fórmula à exaustão. Esse trabalho é reflexo de uma decisão de Elis de gravar um disco mais leve. Foi como um bálsamo para fechar uma década muito dura "Daí o clima de festa de réveillon", como exemplifica o produtor com fraseados de baixo de pulsante influência do funk, na linha do Earth, Wind & Fire e de Stevie Wonder, que então rolava na vitrola de sua casa. Diziam que em termos de produção seus discos ficavam cada vez melhores, enquanto o repertório já não era tão bom. Questionada sobre isso no Jogo da Verdade Elis ironizou: "Eu gravo o que tem, mas já acho fantástico se o repertório não é bom e o disco cada dia que passa está melhor, já acho que estou virando santa milagrosa." Confira frases de Elis no Jogo da Verdade ?Desde 1922, moderno é ser paulista. Ser contemporâneo é ser paulistano. Dane-se quem não quiser acreditar, mas é isso aí (...) A Tropicália aconteceu aqui? ?Desculpe a falta de modéstia, mas a nossa geração foi o seguinte (...) Depois ficou muito pastel, muita feira. Agora, feijoada mesmo fomos nós que fizemos? ?Tá difícil e não é por falta de esforço da gente, de boa vontade da gente e das pessoas. É que tá confuso mesmo. Ninguém faz nada certo em hora errada. A hora está errada? ?Não quero de maneira alguma de repente ser tachada de uma pessoa integrante da chamada cultura oficial, que vai estar cantando essas coisas (referindo-se à vanguarda paulistana) para diluir seu peso? ?Uma época fui obrigada a fazer certas coisas porque era principiante; hoje em dia, porque sou um número, se eu sair vem outro? ?A descaracterização de uma cultura, de uma raça, de uma maneira de pensar e de se comportar de todo um povo não é determinada só por um tipo de música que ele escuta. É por ?n? coisas, todas importadas ou com alvará para que sejam implantadas?

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