Um retorno a Heine no ‘Navio’ de Wagner

Montagem em Belém retoma elementos do autor e leva ópera a região portuária

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Foto do author João Luiz Sampaio
Por João Luiz Sampaio e BELÉM
Atualização:

O cenário é o mar do Norte. Durante uma terrível tempestade, um marinheiro evoca a imagem de Satã – e, como punição, é forçado a vagar eternamente pelos mares, podendo aportar de sete em sete anos. Há apenas uma maneira de livrar-se da maldição: encontrar uma mulher que o ame de forma incondicional.

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É possível que a ideia de criar uma ópera a partir dessa premissa tenha mesmo ocorrido a Richard Wagner durante uma difícil travessia de navio entre Riga e Londres em 1839, mas o próprio compositor reconheceria mais tarde que a base para O Navio Fantasma (ou O Holandês Voador) foi Das Memórias do Senhor de Schnabelewopski, de Heinrich Heine.

Wagner eliminou o elemento satírico do livro e reescreveu o final – o que lhe permitiu abordar temas caros, como a redenção por meio do amor. Ainda assim, em sua montagem para o Festival do Theatro da Paz, em Belém, o diretor Caetano Vilela optou por voltar ao original de Heine e dele extrair elementos a serem retrabalhados em sua concepção.

O primeiro deles, retratado durante a abertura, é a tentativa de suicídio da jovem Senta. O segundo é o estabelecimento de um jogo de espelhos entre ela e o Holandês. Os dois, afinal, na esperança que nutrem pelo encontro do amor (assim como nas expectativas que nele depositam), compartilham o mesmo mundo de fantasia.

Tudo isso – e aqui entra outro aspecto da concepção cênica de Vilela, diretor no Brasil da Companhia Ópera Seca, grupo criado por Gerald Thomas – se dá em um armazém de uma região portuária. Os figurinos evocam o universo grunge, e paredes de contêineres estão repletas de pichações no alfabeto rúnico que, segundo explicou o diretor em entrevista ao Estado em julho, guarda semelhança com pichações dos prédios paulistanos. A qualidade da produção está no modo como esses elementos dialogam de forma harmoniosa, em uma narrativa fluente – mas jamais óbvia. O navio do Holandês, por exemplo, chega por cima do palco e, por conta disso, é também suporte para a iluminação. Há aí uma quebra com a linearidade, assim como na grande cena coral do terceiro ato, na qual, por meio do trabalho de luz, o diretor inverte a dinâmica cênica e insere o público na ação

Há uma coerência estética na programação do Festival do Teatro da Paz, o que permite o desenvolvimento dos corpos estáveis. No Navio Fantasma, no entanto, a orquestra teve desempenho irregular, em especial se comparada com sua boa atuação em Il Trovatore, de Verdi, apresentada em agosto, ou mesmo na Salomé, de Strauss, que encerrou a edição do ano passado do evento. Sob a regência de Miguel Campos Neto, foi apenas no terceiro ato que o grupo mostrou seu verdadeiro potencial, ajustando em especial o equilíbrio entre os naipes e recriando de maneira mais clara a riqueza de coloridos e texturas da partitura.

O barítono Rodrigo Esteves foi o destaque da noite como o Holandês, em uma interpretação musical e eficiente ao encontrar tons de lirismo em meio à aspereza de um homem amaldiçoado. Já à Senta da soprano Tati Helene, faltou presença cênica e vocal que fizesse jus à importância da personagem no desenvolvimento da trama. A surpresa da noite foi o tenor brasileiro radicado nos Estados Unidos Ricardo Kamura, um Erik de timbre bonito e nuançado. O baixo Denis Sedov e o tenor Antonio Wilson Azevedo tiveram desempenhos corretos como Daland e o Steuermann.

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