Série 'O Livro do Disco' analisa 'Songs in The Key of Life', clássico     de Stevie Wonder

Trabalho é considerado um dos maiores álbuns duplos da história

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Por Julio Maria
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A tampa da panela de pressão voou pelos ares em uma manhã do dia 9 de outubro de 1976. Stevie Wonder já era Stevie Wonder desde os onze anos, quando surgiu como um pequeno extraterrestre tocando gaita e cantando um absurdo. E mais Stevie Wonder ainda, mesmo chamando Little Stevie para mostrar Fingertips Part 2 com um maluco de nome Marvin Gaye na bateria. Já tinha contrato garantido com o selo Tamla Records, da Motown, e já havia também se libertado das correntes desse contrato, assinado por sua mãe, que lhe daria pouquíssimo dinheiro pelos primeiros sucessos até seus 21 anos. Já havia feito história com os álbuns Talking Book, de 1972, e Innervisions, de 1973, e já era grande, mas não completo. Stevie Wonder só virou mito naquela manhã de 1976, quando a tampa da panela de pressão voou pelos ares.

Stevie, durante apresentação no Brasil em2013 Foto: Felipe Rau/Estadão

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As lojas de disco recebiam um álbum duplo com 21 canções chamado Songs In The Key of Life. A capa era uma ilustração que trazia o rosto de Stevie no centro de uma série de camadas alaranjadas em círculos sobrepostos, mas o que saía de seus sulcos era o mais aterrador. Stevie apresentava não um disco de carreira, mas uma experiência transformadora. Havia passado dois anos entre gravações em estúdios e pesquisas de sons até atingir o que a história chamaria de “um dos melhores discos duplos de todos os tempos”, desbancando em muitas listas o próprio Álbum Branco, dos Beatles. Songs é agora analisado em minúcias, perfilado como se fosse um ser de vida própria pelo escritor e crítico musical norte-americano Zeth Lundy. Um ensaio que se movimenta da obra em direção ao homem e vice-versa o tempo todo. Um perfil de Stevie centrado naquela que muitos apontam como uma de suas principais construções, reunindo todos os planetas que frequentariam a órbita de Stevie por toda uma vida. Uma publicação de 146 páginas da série Livro do Disco, da editora Cobogó. A explosão criativa de Stevie estava em sequências espantosas, como a primeira, com Love’s In Need Of Love Today, Have A Talk With God, Village Ghetto Land, Contusion, Sir Duke e I Wish. Ideias e fôlego imenso que podem ter explicação na vingança do talento contra anos de uma prática sufocante à qual Steve se submeteu por estar preso ao contrato da Motown, na qual lança discos até hoje. Um documento que lhe garantia, independente do sucesso que fizesse, a insignificante quantia de U$S 2,5 por semana – tudo o que ele ganhava mesmo quando músicas como Fingertips Part 2, For Once in My Life e Signed, Sealed, Delivered I’m Yours chegassem ao topo das mais vendidas. Stevie deixou o prato esfriar por anos, até que ele fizesse 21 e o degustasse com apetite de estivador. Songs, lançado por um músico com 26 anos, podia ainda ser produto de uma ferveção artística devidamente guardada para ser revelada apenas na hora certa. Sim, Stevie Wonder se deu ao luxo de guardar seus maiores tesouros para lançar apenas quando chegasse à maioridade e poder ganhar direitos autorais mais justos – não que o que ele tenha feito antes disso seja ruim. “Ele estocou canções em sua cabeça, segredos reveladores mantidos longe daqueles que buscavam lucrar com eles. A transformação artística em Stevie ocorria em total privacidade. Todos, incluindo seu empregador, teriam que esperar até que ele atingisse a maioridade para ter algum vislumbre”, narra o livro. Ao Estado, o autor faz mais considerações sobre o assunto: “Ele recuperou a autonomia artística e pessoal quando completou 21 anos. Só com esta idade foi capaz de assumir o controle de seu contrato com a Motown e passar a fazer o que ele queria fazer. Se você tivesse um Stevie Wonder com 21 anos em sua gravadora, você deixaria ele fazer o que quisesse, certo?” I Wish, com um dos mais bem sucedidos grooves do funk pop dos anos 1970, é exemplo de como os pensamentos saltavam de Stevie, sem hora para aparecer. Nate Watts, o gigante baixista, recorda ao autor do dia em que chegou em casa depois de um exaustivo dia de gravações. Assim que se deitou, por volta de 1h da manhã, o telefone tocou: “Stevie ligou e disse: ‘Preciso que você volte. Estou aqui com uma música daquelas’”. Sobre a colocação de Songs no histórico dos álbuns duplos, Zeth analisa ao Estado: “Todos os melhores álbuns duplos trazem ‘perfeições imperfeitas’. São inspiradores e envolventes, mas também confusos e indisciplinados, como The Beatles (Álbum Branco, de 1968), London Calling (The Clash, 1979) e Tusk (Fleetwood Mac, 1979). Todos eles têm enchimentos e algumas músicas que não funcionam em um primeiro momento.” Ele compara com o Álbum Branco e fala sobre a gama de emoções em jogo durante os quatro lados dos LPs: “Como o Álbum Branco, Songs provavelmente seria um clássico de todos os tempos se fosse reduzido a um único disco. Mas ele também aspira ser o álbum duplo que deveria acabar com todos os outros álbuns duplos – há blues, soul, gospel, jazz, rock and roll, e R&B. Ele tenta cobrir todos os aspectos da emoção humana. Será que consegue? Claro que sim, em sua maneira ‘perfeitamente imperfeita’”.O Livro do Disco. Songs in the Key of Life (álbum de Stevie Wonder, de 1976) Zeth Lundy. Ed. Cobogó. Preço: R$ 32

TRECHO

O artista perdeu a capacidade de encantar, digamos assim, imediatamente depois da criação de Songs. Ele tinha somente 26 anos na época: perto o suficiente da adolescência para lembrar de suas engrenagens e, no entanto, ingênuo o suficiente para arriscar todas elas em nome das consagradas promessas da vida adulta. Seu álbum seguinte, Journey Through The Secret Life of Plants (1979) é um exemplo clássico desse súbito abandono sofrido pela musa. Esse álbum não só foi lançado após o maior intervalo entre os trabalhos da carreira do artista (três anos), como é possível que se trate do lançamento comercial mais estranho já feito por um grande artista pop no auge da fama: uma trilha sonora altamente instrumental para um documentário.  

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