‘Turandot’ celebra um continente feito de ópera

Em Bogotá, uma nova produção da obra de Puccini e caminhos para o diálogo entre teatros latino-americanos

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Por João Luiz Sampaio
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BOGOTÁ - Encravado no centro de Bogotá, em meio a ruas de comércio caótico, o Teatro Municipal Jorge Eliécer Gaitán homenageia em seu nome um dos líderes políticos mais importantes da Colômbia, candidato a presidente cujo assassinato levou a uma revolta popular que tomou a capital do país em abril de 1948. Na noite de quinta-feira, no entanto, seu palco foi tomado por outro drama, narrado por Puccini em sua última ópera: Turandot

A montagem é uma realização da Ópera de Colômbia, integrante fundadora de um grupo, a OLA, Ópera Latino América, que pretende unir teatros do continente – incluindo os principais palcos brasileiros.

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Prestes a completar 40 anos, a companhia é uma entidade sem fins lucrativos que sobrevive tanto da iniciativa privada quanto do poder público. Turandot, por exemplo, custou US$ 500 mil – dos quais apenas US$ 150 mil vieram do governo. O grupo não tem uma orquestra própria. Produz três títulos por ano – mas o número de óperas depende do tamanho dos passos a serem dados pelas produções. Em 2013, por exemplo, eles trouxeram a Bogotá o maestro Gustavo Dudamel e a Sinfônica Simon Bolívar para Tannhäuser, primeira ópera de Wagner a ser encenada no país; mas os custos significaram limitar a programação a um só título.

Ainda assim, a Ópera de Colômbia não apenas tem sobrevivido a diversos momentos políticos e econômicos, como foi responsável, nas últimas décadas, pelo que de mais importante aconteceu em ópera na Colômbia. “Dificuldades no processo de imigração demoraram a permitir o desenvolvimento aqui de uma escola, uma tradição”, diz Alejandro Chacon, assessor artístico da companhia e diretor cênico da montagem de Turandot. “Depois dessas quatro décadas, a situação mudou bastante. Hoje, temos uma geração de cantores colombianos que começam a ganhar o mundo, por exemplo, cantando em palcos como o Metropolitan de Nova York.”

Conversar com Chacon é viajar pelo continente. Com exceção de Paraguai e Bolívia, ele já dirigiu óperas em todos os países da América do Sul, inclusive o Brasil, onde concebeu montagens para o Teatro Amazonas e o Municipal de São Paulo. Não por acaso, integrou desde o início o grupo que começou a esboçar a OLA em Manaus, em 2009. A ideia era estabelecer um fórum de discussão entre os teatros e companhias, identificando problemas em comum e possíveis soluções, entre elas, coproduções. Mas, na prática, a entidade ainda não decolou, mesmo que tenha originado parcerias pontuais – e, principalmente, no que diz respeito ao intercâmbio de profissionais. 

Para Chacon, no entanto, é preciso, antes de mais nada, aceitar a diversidade do continente. “Uma melhor parceria passa por entendermos que, enquanto há teatros com grupos estáveis e bons orçamentos, há outros lutando para simplesmente sobreviver. Talvez seja preciso criar grupos dentro da OLA que aproximem teatros em situações parecidas”, afirma. Será essa sua sugestão na próxima reunião da entidade, marcada para novembro, em São Paulo – quando as atenções, mais uma vez, estarão voltadas para os diálogos possíveis na ópera do continente.

Brasileira na orquestra da capital

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A maestrina Lígia Amadio comanda a Filarmônica de Bogotá, que integra projeto didático que atende 8 mil crianças

BOGOTÁ - Na noite de quinta, com Turandot, de Puccini, um grupo de jovens fazia sua estreia no universo da ópera. A orquestra, na verdade, é parte, de um projeto mais amplo, no qual está envolvida a maestrina brasileira Lígia Amadio. Desde o início do ano, ela comanda a Filarmônica de Bogotá – e, à orquestra profissional, criada em 1967, somaram-se recentemente grupos jovens e um projeto didático que conta com cem professores, a quem cabe atender 8 mil crianças da capital colombiana. 

A orquestra lida com alguns desafios. Não tem, por exemplo, uma sede própria. Mas, ainda assim, vive uma realidade diferente daquela experimentada pela Ópera de Colômbia. O projeto é inteiramente bancado pela prefeitura – e seu orçamento, na casa dos R$ 25 milhões segundo relatório dos últimos anos, chega a ser maior do que o orçamento destinado pelo governo federal para cultura. 

A segurança institucional permite voos ousados. Em 2014, por exemplo, toda a programação, com cerca de cem concertos, é composta de obras do século 20 e 21. “É algo que sempre quis experimentar e agora pude fazer”, diz Lígia durante o intervalo de um ensaio da orquestra, na manhã de quinta, no Teatro Taller, quando era interpretado um repertório com obras de Bernstein e Gershwin. “Na semana passada, fizemos um programa com Schoenberg e Webern. E a reação do público tem sido surpreendente, é algo revelador.” / J.L.S.

Um clássico feito de ambiguidades e de desejos

Talvez por isso, a história do século 17 tenha voltado ao gosto do público nos anos 1900 e atraído o compositor italiano

BOGOTÁ - Última ópera de Puccini, Turandot narra a história da princesa chinesa que, em defesa da memória de uma antepassada desonrada por um príncipe estrangeiro, passa a vida a desafiar viajantes de outras terras. Eles precisam acertar a resposta de três enigmas: se estiverem corretos, conquistam a mão da princesa; se errarem, são executados. 

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Turandot é uma ópera feita de ambiguidades e contradições. E desejos. Talvez por isso a história original, que remonta ao século 17, tenha voltado ao gosto do público em uma série de traduções no final dos anos 1900 – e interessado Puccini que, em sua versão, trabalhou sobre uma adaptação feita por Friedrich Schiller.

Afinal, Turandot, fala em honra ao mesmo tempo que, em seu nome, pratica a tortura. E Calaf, exaltando a beleza e inevitabilidade do amor por ela, parece não se incomodar com o fato de que a condição para que ele se realize é a morte cruel de uma jovem, Liù, cuja única culpa é também ter se entregado a uma paixão.

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A montagem de Bogotá, em um cenário bastante tradicional (no qual se destacam apenas os figurinos de Adan Martinez), parece apostar na ideia de que a força do drama está justamente nessas incoerências. A direção de Alejandro Chacón parece simples à primeira vista – mas esconde um trabalho cuidadoso e sutil de atores e de movimentação cênica: em um ambiente cênico tão convencional, há um frescor contundente no modo como os dramas são apresentados, o que não é feito pequeno em uma ópera que tem sido tão reinterpretada ao longo do tempo.

E, no final das contas, se há redenção para esses personagens, ela está na música de Puccini, que dá sentido ao libreto mesmo em seus momentos mais incongruentes. E isso se dá especialmente com uma regência fluente como a do maestro italiano Marco Boemi. No primeiro ato, é verdade, a orquestra demorou um pouco a decolar. Mas a partir do segundo ato, regente e orquestra – de excelente nível técnico – pareceram mais atentos e à vontade com a dramaticidade de uma partitura que estabelece um fluxo narrativo contínuo e perverte o formato original das árias em nome de um discurso musical mais coeso – e, consequentemente, teatral.

Cantora revelada nos anos 1990, a italiana Francesca Patanè teve dificuldades com a escrita vocal de Turandot, com problemas sérios de afinação, em especial nas regiões mais agudas da voz. Já o Calaf do coreano Rudy Park é uma revelação: volume, riqueza de coloridos, agudos fáceis, graves cheios, a serviço de uma boa composição cênica. O mesmo vale para a colombiana Betty Garcés, que interpretou Liù ou para o barítono Valeriano Lanchas, que viveu o papel de Ping e, no ano que vem, fará sua estreia como Bartolo em O Barbeiro de Sevilha, no Metropolitan de NY. / J.L.S.

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