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Tudo sobre jazz em 850 páginas

Por Agencia Estado
Atualização:

Você fica na defensiva quando lhe perguntam o que acha de Duke Ellington, Coltrane ou os meninos que acabaram de tocar no Free Jazz, como Ravi Coltrane e Greg Crosby. Gosta do som, mas fica perdido quando entra numa loja de discos. Lê que o jazz morreu! Não, escreve outro, o jazz não morreu, está vivíssimo, sim senhor! Pois seus problemas acabaram. Acaba de sair, nos Estados Unidos, um livro que promete acabar com toda e qualquer dúvida tanto dos aficcionados e estudiosos quanto dos que se aproximam do jazz pela primeira vez. The Oxford Companion to Jazz, editado por Bill Kirchner, tem 850 páginas, e reúne 59 artigos inéditos dos mais qualificados especialistas no assunto. Não, não se assuste com as 850 páginas. Os artigos são relativamente curtos, em média de 8 a 10 páginas. Mas o melhor da história é que Kirchner, ele mesmo compositor, arranjador, saxofonista e historiador do jazz, foi incisivo quando lhe perguntaram qual o público-alvo do livro. "Todo mundo e qualquer um, desde os noviços que estão agora chegando perto do jazz como os fanáticos que sabem muito." O editor levou dois anos para escolher colaboradores e chegar a este formidável volume, que se equilibra na difícil corda bamba de ser apetitoso para todo tipo de leitor. A proeza deve-se à adequação dos colaboradores aos seus temas (Richard Sudhalter, por exemplo, que lançou há pouco Lost Chords, uma história do "desprezado" jazz branco entre 1915 e 1945, escreve sobre A Idade do Jazz - Realidades e Aparências e relembra até um Phil Napoleon, além, é claro, das estrelas brancas Bix Beiderbecke e Jack Teagarden). O severo trabalho de edição resulta em artigos de fácil leitura e com muita informação nova e interessante (Kirchner agradece à Internet e diz que o livro só se viabilizou por causa do correio eletrônico). Com a vantagem de que o livro revisa, contesta ou confirma, enriquecendo mitos que se vêm perpetuando ao longo do século. Detalhamento - Iluminando o nascimento, o Jazz Companion é completíssimo e esquadrinha todos os aspectos do gênero, dedicando capítulos a cada um dos grandes criadores, instrumentos, estilos e conexões com a dança, literatura, cinema, televisão, educação, crítica, clubes, além das questões geográficas (Europa, América Latina, Japão, África, Austrália). Entre os colaboradores, estudiosos, jornalistas, críticos, produtores e músicos do mais alto nível, como Bob Porter, Chris Albertson, Dan Morgenstern, Mark Tucker, Max Harrison, Scott DeVeaux, Ted Gioia, Brian Priestley, Will Friedwald, Gene Lees, Gene Santoro e até Gunther Schuller, entre muitos outros. Importante, cada um em sua praia: Scott Deveaux no bebop (escreveu o mais recente e inovador livro sobre o assunto), Ted Giogia sobre o west coast (tem livro escrito), Mark Tucker sobre Ellington (é autor do Duke Ellington Reader). E por aí vai. O grande destaque, no entanto, fica com o período mais nebuloso do jazz, o que cerca sua gestação e nascimento. Cobre, grosso modo, o período 1870-1917, data da primeira gravação do branquíssimo grupo Original Dixieland Jazz Band (ODJB), que vendeu 250.000 exemplares na largada. Os dois primeiros artigos, ambos excelentes e muito bem fundamentados, mostram os dois lados da moeda, conflitantes mas nem por isso menos esclarecedores. Mais previsível, Samuel Floyd Jr. começa documentando certas práticas comuns à música na África e à música negra norte-americana. Invocando os cantos e danças rituais presididos por divindades como Ochosi, Esu e Olodumare, nossos velhos conhecidos da Bahia, Floyd dedica-se a uma análise detalhada para concluir que as blue notes, o estilo pergunta-resposta, os polirritmos (vários ritmos tocados simultaneamente) e os instrumentos imitando as vozes e vice-versa -- tudo isso sobrevive não só no jazz, como no blues & aparentados. Ele reconhece, claro: "Os primeiros africanos nos Estados Unidos levaram em conta as idéias musicais européias, como material a ser explorado dentro de um amplo contexto musical africano." Seu colega logo a seguir, William Youngreen, radicaliza ao afirmar: "O jazz, as inúmeras espécies de música de dança importadas por este país da Europa e a música de concerto dos últimos séculos são todas espécies de música tonal". E, portanto, basicamente brancas e européias. "A harmonia do jazz evoluiu da época de Mozart até a de Mahler, em um quarto de século". Mais interessante ainda, Max Morath joga novas luzes sobre o ragtime, gênero imediatamente anterior ao jazz, que dividiu com o blues a hegemonia nos anos 10. Jeff Taylor complementa em The Early Origins of Jazz: "O que os músicos chamavam de jazz nos anos 20 já não era o ragtime, mas ainda não havia assumido a forma do jazz." E mais: demole vários mitos sobre a origem do jazz, sobretudo os relacionados com o período de 1890 a 1917, quando não existiram gravações. Lá vão algumas delas: o jazz era preponderante em New Orleans, mas também era praticado em outras cidades, como Nova York, Chicago, no sudoeste e até na costa oestet. Nem todos os músicos eram analfabetos musicalmente e trabalhavam nas zonas do baixo meretrício de New Orleans; boa parte sabia ler música (encontraram-se arranjos escritos para os conjuntos) e tocava em lugares tidos como decentes. O blues e o jazz hoje - Mais que uma forma, esclarece Bob Porter, o blues vem sendo inspiração permanente para músicos e cantores, nestes cem anos. Das 54 músicas gravadas pelo pioneiro ODJB, 30% levavam a palavra blues no título. Em 1931, já ungido como ídolo da raça, pois tinha suas performances no Cotton Club transmitidas pelo rádio, Duke Ellington profetizava: "A música de minha raça vai sobreviver, é algo que a posteridade vai pôr numa posição muito mais elevada do que a música de baile de hoje." A ruptura - e o nosso Companion detalha todo o processo com rigor e escrita atraente e objetiva - aconteceu nos anos 40, com o advento do bebop (nos anos 30, alguém anota, o bebop foi prefigurado nas jam particulares, em que os músicos tocavam para si mesmos). O divórcio entre a música de baile e as pretensões criativas aprofundou a distância entre os músicos e o público - distância que a vanguarda dos anos 60 pregava irreversível. Miles Davis, um dos detonadores deste processo, em 1949 (Birth of the Cool), 1959 (Kind of Blue) e 1969 (Bitches Brew), também se viu obrigado a pegar um retorno, numa fusion discutível, nos anos 80. Falou retorno, falou Wynton Marsalis, músico excepcional, genial mesmo, mas... Peter Keepnews reclama: "Ele está usando seu púlpito do Lincoln Center para proclamar autoritariamente o que merece e o que não merece ser chamado de jazz" (pág. 499). Depois de detonar os young lions dos anos 90, como Joshua Redman ("Mais conservador que os jovens músicos de vinte anos atrás"), Keepnews pergunta-se: "Agora, no final destes anos 90, fica difícil saber se o sucesso de Redman é um sinal positivo para o jazz ou um simples triunfo de marketing." O jazz, na virada do milênio, diz Keepnews, é um "lugar superlotado" - craudeado, diria a moçada --, com espaço para todo tipo de prática musical, onde se destaca a "postura historicista." Mas isso não ameaça sua vitalidade: "Pelo contrário, só atesta seu poder musical permanente."

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