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Zuza Homem de Mello: 'Tínhamos de estar prevenidos para quando João Gilberto não estivesse mais'

A pedido do 'Estado', o autor do livro 'João Gilberto' reflete sobre a morte de João Gilberto

Por Zuza Homem de Mello
Atualização:

Tínhamos que nos preparar. Tínhamos que estar prevenidos para o dia em que João Gilberto não estivesse mais aqui.

João Gilberto durante show no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, em 2008 Foto: Wilton Júnior/Estadão

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Trancado a sete chaves por si próprio, tocando seu violão, cantando sozinho ou para alguém que privasse do momento sublime de ouvir João, não importa. Lá estava ele, existia. E agora? E agora Chico, Caetano, Gil, Milton, Edu, Marcos, Dori, João Bosco, Moraes, Djavan, Rosa e toda a geração que ele colocou na música? E nós que nos criamos ouvindo-o? E os que pelo mundo inteiro ficaram perplexos com seu som, o que será de todos nós de agora em diante? Teremos que viver sem ele. Teremos que tocar a vida sabendo que nada mais existe além do que já veio à tona. Será mesmo? Alguém não terá uma gravação caseira, uma música de show no celular, uma amostra inédita para mostrar? Agora que ele não está mais, o que vai aparecer dele, dos guardados com João Gilberto, não se sabe.

O que se sabe é que João Gilberto mostrou ao mundo uma nova bossa de cantar e de tocar o samba, o baião, a marchinha, a valsa, o samba-canção, o foxtrote, um hino, uma cantiga. No concerto do Carnegie Hall ele conseguiu derrubar a barreira do código que mantém o entendimento entre quem canta e quem ouve. Até os que não entendiam português compreendiam aquela música.

Ouvir João Gilberto requer aprendizado. Requer concentração apuradíssima para se usufruir de tudo ao mesmo tempo: a precisão micrométrica do violão, a identificação das notas formando acordes, as sutis alterações harmônicas, o balanço rítmico irresistível, a destreza de seus dedos acertando as cordas do braço do violão, a posição da mão direita no jogo de vai e vem, a justeza equilibrada entre o volume do instrumento e da voz, a dicção impecável, a emissão na medida certa, a minúcia das quase imperceptíveis mudanças na divisão, as defasagens rítmicas e alterações melódicas, a argúcia dos silêncios, a supressão do supérfluo, a valorização dos esses, dos erres, das consoantes e vogais; do sentido das palavras, das profundas notas graves, a capacidade de fazer vir à tona a intenção do verso, a delicadeza em mostrar a música como nunca se ouviu antes. É o requinte da elevada depuração para o ouvido humano. Saber ouvir João Gilberto, eis a questão.

É o que o mundo musical vem fazendo desde 1958. Nada, absolutamente nada envelheceu. As 36 faixas de seus três primeiros discos contêm tudo que se precisa saber para entendê-lo, para embarcar na Bossa Nova admirada pelo mundo afora, responsável por mostrar que a música brasileira tinha uma cara nova.

A vida enclausurada de João Gilberto foi constantemente incompreendida e criticada. Não se atestou porém que artistas excepcionais vivem à sua própria maneira, sempre na busca. Noel Rosa viveu 26 anos intensamente afogado na boemia, o que levou à breca seus pulmões, Lorenz Hart viveu embebido no álcool tentando resolver seu homossexualismo pecaminoso à época. E Picasso com suas mulheres? E Miles Davis? A arte é sublime. Queixas são infundadas. Queixam-se que João quase não se comunicava exceto nas intermináveis ligações telefônicas de horas seguidas. Felizes os escolhidos nessas chamadas.

Os mestres não se comunicam através de palavras. João Gilberto deu tudo de si para se comunicar com o que de melhor tinha, sua música. Sem nunca comprometê-la. Por isso precisava do melhor, a melhor sala, o melhor violão, o melhor microfone, o melhor som, o melhor técnico, sempre o melhor. João Gilberto era o melhor.

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Em sua obra gravada iniciada com a Bíblia da Bossa Nova, os tais três primeiros discos – “Chega de saudade”, “O amor, o sorriso e a flor” e “João Gilberto” – que motivaram uma ação de anos a fio e cujo ganho foi dele, João traçou o rumo. A mais de desprezarem a ciência de ordenamento das faixas, os responsáveis pela lamentável produção do CD atentaram contra o fundamental em João ao inserirem um reverb sem propósito e fatal. 

Nos discos posteriores e de frequência esparsa, João Gilberto deu luz a canções esquecidas que, guardadas em sua memória absurdamente fantástica, puderam ser pinçadas no momento certo para vir de novo à tona. Era esse um dos motivos que iscava a plateia ansiosa em saber como João a surpreenderia a cada vez. Ouvidas como troféus que se recebe de um mago. Em outras revelações ofertou aquilo que existia escondido em canções familiares, que no entanto ninguém percebia existir. Vieram Adoniran, Gershwin, Denis Brean e, em certas audições surpresa, versões que poucos tiveram a ventura de assistir, “Casa portuguesa”, “Oh! Minas Gerais”, “Parabéns a você” e outras peças irrisoriamente simples das quais João extraia uma musicalidade escondida que só ele foi capaz de descobrir. Foi mesmo capaz de transformar melodias do anonimato em obra prima.

O samba do Brasil teve raros momentos de ruptura a determinarem os capítulos de sua história. O mais revolucionário deve-se ao gênio que foi cantar noutra freguesia, João Gilberto.

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