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Tango híbrido mescla rock, hip-hop, tecno e bossa nova

N trilha aberta pelo grupo francês Gotan Project, o ritmo tradicional argentino se renova

Por Agencia Estado
Atualização:

Desde que o grupo francês Gotan Project impressionou o mundo ao aproximar a eletrônica do tango em 2001, abriram-se as comportas para o que é considerada a terceira onda internacional do gênero. Além de representar mais uma ruptura na tradição de um estilo dramático e tido como conservador, portanto, pouco aberto a mudanças, a experiência híbrida - que não dispensa o som do instrumento mais característico do tango, o bandoneón -, também estimulou outros músicos, produtores e cantores portenhos a trilhar caminhos diferentes. O grupo Tanghetto, um dos mais bem-sucedidos da atual safra argentina, prepara um álbum para 2007, em que mescla eletrotango, bossa nova e reggae. Com diferentes abordagens do tango, acabam de sair no Brasil outros interessantes trabalhos. Em comum, influências de Astor Piazzolla Um deles é Tinta Roja (Warner), de Andrés Calamaro, em que o veterano cantor, ex-roqueiro, conduz clássicos do gênero para o convívio do flamenco. O septeto paulista De Puro Guapos - Orquestra Típica de Tangos, no álbum de estréia Ao Vivo (Lua Music) também revisita tangos e milongas do início do século 20 bem como a modernidade de Astor Piazzolla, temperando com sotaque brasileiro próximo do choro. Já em Bajofondo Tangoclub Presents Supervielle (Dubas) o tecladista uruguaio Luciano Supervielle transita entre milonga, tango e candomblé combinados com samples diversos e batidas de drum?n?bass, house, trip-hop, hip-hop e pop-rock. É um passo adiante das propostas seminadas no sintomático álbum La Revancha del Tango (do Gotan Project) e propagadas pelo Bajofondo Tangoclub, coletivo liderado pelo produtor e compositor Gustavo Santaolalla, de onde saiu Supervielle. Em comum, todos revelam influências do genial bandoneonista, compositor e arranjador Astor Piazzolla (1921-1992), responsável pela mais impactante reformulação do tango a partir do fim dos anos 1950. Electrotango é um fenômeno mais comercial Para o bandeonista Martín Mirol, único argentino no Puro Guapos, o electrotango é um fenômeno mais comercial do que musical. Os experimentos eletrônicos têm acolhido expoentes veteranos, como a cantora Adriana Varela e o cantor (também ex-roqueiro) Daniel Melingo, presentes na estréia solo de Supervielle. Melingo, que enveredou pelas heranças tangueiras há 11 anos, passou a ser chamado de Tom Waits do gênero, por causa da aspereza vocal. Espetáculo para turista A espécie de tango mais popular no Brasil ainda é aquela dos espetáculos para turistas que de vez em quando aporta nas casas noturnas. Com raríssimas exceções, os poucos CDs do gênero em catálogo por aqui ainda são compilações com os velhos e malhados clássicos - os mesmos que se ouvem nos citados shows. Daí a boa e surpreendente edição nacional dos álbuns de Supervielle, Andrés Calamaro, além do Puro Guapos. O resto só mesmo importando. Caso dos dois bons álbuns do Tanghetto, Emigrante (Electrotango), de 2004, e Buenos Aires Remixed (2005) que inclui remixes curiosos para hits do Depeche Mode (Enjoy the Silence) e New Order (Blue Monday). Apesar da repercussão de La Revancha del Tango, o segundo do Gotan Project, Lunático (lançado em abril), ainda não chegou por aqui. Conseqüência natural do primeiro, tem também flertes com o hip-hop (Mi Confesión) e uma bela versão de Paris, Texas, tema de Ry Cooder para o filme homônimo, de Wim Wenders. Mas o que melhor reflete o tango contemporâneo de Buenos Aires, é o grupo Fernández Fierro, que lançou recentemente o terceiro álbum de estúdio, Mucha Mierda. São músicos que, a exemplo de Andrés Calamaro e Daniel Melingo, tocavam rock, estudaram música e foram desembocar no tango. Tangueiros de várias searas Outros novos tangueiros, curiosamente, vieram de searas musicais diversas. Supervielle, por exemplo, começou a carreira num grupo de hip-hop. Mirol também gostava de rock e só se deu conta da dimensão do tango quando veio morar no Brasil. Voltou a Buenos Aires para estudar bandoneón e, de posse do instrumento na volta aos estudos de música em São Paulo, decidiu tocar tango criando a orquestra típica De Puro Guapos em 1999. O grupo teve várias formações instrumentais e chama a atenção justamente pela sonoridade atípica no gênero. Atualmente é composto por Mirol (bandoneón e arranjos), Rafael Zacchi (clarinete), Leonardo Padovani e Luiz Gustavo Ruivo Nascimento (violinos), Marcos Braga Fonseca (viola), Martha Autran Dourado (violoncelo), Vinicius Pereira (contrabaixo) e Paulo Brucoli (piano). Boa parte do repertório de seu CD Ao Vivo é de composições de Astor Piazzolla (Zum, Libertango, Milonga del Ángel, entre outras). As demais são tangos mais primitivos, como 9 de Julio, que eles atualizam, com olhos brasileiros. "Não dava para recriar os arranjos originais porque não faz sentido", segundo Mirol. Mas de alguma maneira reflete a época, até pela proximidade com o choro (especialmente no som da flauta), gênero contemporâneo do tango. Antitango de salão Segundo, Mirol, o que eles fazem é o antitango de salão, que a partir dos anos 40 e 50 (período que eles "pulam" em seu trabalho) passou a ter mais preocupação rítmica do que harmônica "O cinema americano e a ditadura na América Latina impuseram um domínio cultural que hoje se tornou impossível ouvir rádio", critica Mirol. Ainda bem que pelo menos Piazzolla fez escola. A aproximação de tendências improváveis pode soar sem sentido à primeira audição. Daí o estranhamento que tem provocado a interpretação de As Rosas não Falam, de Cartola, vertida para o tango no novo CD da cantora Virgínia Rosa, Samba a Dois (Eldorado). Mas, se como afirmou Jorge Luis Borges, "o tango é negro na raiz", não chega a ser uma profanação. Mais surpreendente parece quando um ex-roqueiro como Andrés Calamaro aproxima o tango do flamenco em Tinta Roja. E mais: repaginando clássicos dos anos 30 e 40, como El Día Que me Quieras, Mano a Mano e Por una Cabeza. A voz rascante e os arranjos secos são atrativos incomuns. "O tango e o flamenco têm muito o que ver um com o outro porque compartilham da mesma força, da mesma energia", disse o guitarrista espanhol Niño Josele, que acompanha Calamaro no CD. Voltando à eletrônica, tanto o Tanghetto, como Supervielle e o próprio Gotan Project, comprovam que no terreno do electrotango ainda há muito a ser explorado. Ao expor o drama do tango para dançar de variadas formas, os produtores atuais evitam o choque radical e provam que a opção por associações, supostamente incompatíveis, resultam sonoramente satisfatórias. Estilo próprio Luciano Supervielle (ex-integrante do grupo de hip-hop Plátano Macho) diz que "o que tentamos realizar, dentro do coletivo Bajofondo, é um som próprio, um estilo próprio, baseado em vários estilos", diz. Um dos bons momentos de seu CD-solo é um remix de Perfume, com vocal de Adriana Varela, extraído do álbum do Bajofondo. O hip-hop aparece mais forte esteticamente em faixas como Air Concert. "Do ponto de vista técnico da realização de meu disco em particular, me baseio principalmente em técnicas de fazer música que são próprias do hip-hop. Por isso, se tivesse que resumir em poucas palavras o que faço, diria que é hip-hop instrumental rio-platense, ainda que seja muito geral e vago." O Tanghetto começou na Argentina ao mesmo tempo que o Gotan Project se projetava em Paris. Hoje há festas exclusivas de electrotango na Europa e o gênero, que ainda repercute pouco no Brasil, tem atraído público diversificado, mas jovem na maioria. Em recente passagem pelo Reino Unido, o Tanghetto botou todo mundo a cantar Enjoy the Silence ao som do bandonéon. "Foi maravilhoso", lembra Max Masri. Como com a bossa nova ocorreram fenômenos semelhantes, o encontro com o electrotango pode dar novo impulso planetário aos dois gêneros. "Estamos realmente muito interessados em fundir o tango e tentar enriquecê-lo com sonoridades de diferentes lugares. A bossa nova seria ideal por sua doçura e colorido sonoro e poderiam brindar-lhe com um interessante contraste ao sentimento melancólico e emocional do bandoneón", diz Masri. Além do mais, "em seu momento a bossa nova renovou a música brasileira e mundial e hoje o electrotango tem muitas semelhanças com aquele sentimento".

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