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‘Sobrevivendo no Inferno’, dos Racionais MC’s, vira livro e vai cair no vestibular

Grupo faz único show do ano em São Paulo neste sábado, 24, no Credicard Hall; Edi Rock: 'As pessoas se desesperaram'

Por Guilherme Sobota
Atualização:

“60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram violência policial.” A frase dita pelo Primo Preto no começo de Capítulo 4, Versículo 3 marca o “início” da jornada que os Racionais MC’s, maior banda de rap do Brasil, submetem ao ouvinte em Sobrevivendo no Inferno. O disco de 1997 foi selecionado para o vestibular da Unicamp 2020, por sua poesia contemporânea, e agora virou livro pela Companhia das Letras.

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Em 1997, os Racionais já eram um dos mais importantes grupos de hip hop do Brasil após o reconhecimento que o primeiro disco cheio, Raio X do Brasil (1993), proporcionou. Mas com Sobrevivendo no Inferno, e a marca de 1,5 milhão de cópias vendidas, veio a projeção nacional, o trânsito do rap entre classes sociais, aparições mais frequentes na mídia e turnês internacionais.

Talvez a principal inovação do grupo fosse “a maneira de tematizar o cotidiano periférico” de igual para igual, como diz o professor da Universidade de Pernambuco, Acauam Oliveira, autor do prefácio da edição em livro. Mas há outras que aparecem no Sobrevivendo: “agressividade da postura presente nas letras e nos arranjos, elevado grau de contundência das narrativas, carregadas com o senso de urgência daqueles que estão literalmente em meio a uma guerra”.

Racionais MC's: Edi Rock, Ice Blue, KL Jay e Mano Brown Foto: Klaus Mitteldorf

O texto reúne ainda opiniões de outros especialistas, como Francisco Bosco, Tiaraju D’Andrea e Maria Rita Kehl, para aprofundar o impacto sem igual que o disco teve na cultura brasileira, a ponto de criar uma subjetividade para o morador da periferia que finalmente encontrava uma identificação.

Neste sábado, 24, Mano Brown, Edi Rock, Ice Blue e KL Jay sobem ao palco do Credicard Hall, na única apresentação do grupo no ano, num raro show com banda e uma retrospectiva da carreira (prévia da turnê que deve ocorrer em 2019 para celebrar 30 anos de trabalhos).

Sobre o livro, o disco e o futuro dos Racionais, Edi Rock falou quando recebeu a reportagem no escritório do Twitter, em São Paulo, na semana passada.

Racionais pré-‘Sobrevivendo’

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O rap. Eu falo Racionais, mas o rap antes do Sobrevivendo no Inferno eram as periferias do Brasil, era onde a mensagem chegava. A gente saiu de São Paulo com Raio x do Brasil (1993), e começou a fazer shows nas periferias. A partir do Sobrevivendo saímos para fora do Brasil. Começamos a cantar para várias outras classes. Começamos a cantar nos Jardins. A nossa vida inteira foi formada na periferia, nos cantos de São Paulo. Pós-Sobrevivendo, começamos a ir além da ponte.

Edi Rock, na sede do Twitter, em São Paulo Foto: Gabriela Biló/Estadão

Relação com a mídia

Nesse momento, o grupo passou a ter uma assessoria de imprensa, uma preocupação de divulgar o trabalho corretamente nos veículos de comunicação. Tem esse momento de organização, por onde veio o relacionamento com a mídia escrita principalmente, e não com a visual, digamos. Naquela época, não tinha internet, estava bem no começo. A gente tinha uma boa relação, pelo que lembro, com o Notícias Populares, com o Estadão, Folha de S. Paulo. E outros. A gente fazia o que eu estou fazendo aqui com você agora. Relação tranquila, natural, estamos divulgando nosso trabalho.

Andar armado na época do disco (após sofrer ameaças)

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Houve uma época que a gente era ameaçado, então tinha que andar ligeiro, andar esperto. A gente não queria pagar um segurança oficial, porque tinha que ser polícia. Por isso que cada um tinha posse e porte de arma. E só dava merda. Brigar no trânsito era motivo para pegar (a arma). Sei lá. No Sul, uma vez, teve um desentendimento entre o pessoal contratante de um show e a gente. Nosso pessoal foi maltratado, deu uma puta treta, ficou nós contra os caras do baile, dentro do ônibus, mó pressão. Acabou que o show foi cancelado, um dos nossos integrantes na época levou uma coronhada, teve que ir para o hospital. Eles queriam agredir o KL Jay. Todo mundo entrou dentro do ônibus depois do bate-boca, uma confusão. Quando o busão está fazendo a volta no quarteirão, os caras encheram de bala. Vários tiros. Todo mundo assim: “abaixa, abaixa”. Essa é uma das fitas. Sempre dá merda. A partir do momento que a gente parou de andar armado, parece que o ferro, a pólvora, se libertou das entranhas da Terra (risos).

Mudanças na abordagem das músicas

A gente falava meio que como dono da razão. Como ditador. “Não faça isso, não faça aquilo”. Passamos a consertar o discurso. Isso rolou antes do Sobrevivendo no Inferno. Aqui a gente já estava encontrando o dialeto, a linguagem direta. Na verdade, no Nada como um Dia Após o Outro Dia (2002), a linguagem é mais rua ainda. Sobrevivendo ainda era a transição. É um disco mais político. Sobre a época mesmo, da briga pelos direitos humanos, falando da chacina no Carandiru, tudo isso. Mas vejo uma transição. Achamos o caminho no Chora Agora e Ri Depois (o disco citadoa cima). Era aquilo que agradava a gente, foi ali o momento “agora sim, som da hora”. O Sobrevivendo ficou bom também. Mas foi uma passagem traumática. Morreu gente.

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Brasil 2018

As pessoas se desesperaram. Como continuar na quebrada? “Precisamos de um capitão do mato”, é isso que está acontecendo. O povo elegeu o capitão do mato. Então, se prepara. Aqueles que são e continuam lá, vão continuar sofrendo, vão continuar morrendo. A urgência é discutir sobre isso. Eu vejo em colocar isso no meu trabalho, na minha música. Colocar “de onde você veio, para onde você vai, o que você quer”. O desespero e a violência venceram novamente. Apareceu um cara falando que era o salvador da pátria, acreditaram, até porque o outro estava desacreditado, no descrédito. Somos políticos, o que fazemos no dia a dia, o rap é político. O rap briga pelos direitos humanos, pelo direito de ir e vir, pelo direito de ser livre, porque aprendemos assim. Ser livre e ser quem você é. Lutar pelo direito de ter sua opinião. Chegou a hora de discutir: o que queremos, o que precisamos na realidade? Se é se amar, pensar na paz.

Em 1997. Foto do encarte do disco; Mano Brown, Edi Rock, KL Jay e Ice Blue Foto: Klaus Mitteldorf

RACIONAIS MC’S

Credicard Hall. Av. das Nações Unidas, 17.955, São Paulo, SP. Sáb, 24/11, 23h30. Portas às 22h. R$150 / R$90.

SOBREVIVENDO NO INFERNO

Autores: Racionais MC’s

Editora: Companhia das Letras (144 págs., R$34,90, R$23,90 o digital)

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