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Sivuca (1930-2006), um estilista da sanfona

Ele foi um dos músicos mais influentes na arte desse instrumento, em diversos casos mais do que o pernambucano Luiz Gonzaga (1912-1989)

Por Agencia Estado
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Estilista da sanfona, Sivuca foi um dos músicos mais influentes na arte desse instrumento, em diversos casos mais do que o pernambucano Luiz Gonzaga (1912-1989). Se Gonzagão redimensionou e popularizou o instrumento ao colocá-lo na condução de seu invento, o baião, Sivuca o expandiu, contribuindo significadamente para seu enriquecimento, bem como o da música brasileira em geral, com o requinte de seus arranjos a beleza de suas melodias e a versatilidade de instrumentista, transitando com desenvoltura entre o erudito e o popular, o jazz o choro e os ritmos nordestinos. (Severino Dias de Oliveira, conhecido nacionalmente como Sivuca, morreu aos 76 anos, nesta quinta-feira à noite. Ele estava internado desde a última terça, no Hospital Memorial São Francisco, em João Pessoa, na Paraíba. Tinha câncer na garganta.) É coerente que tenha encerrado a carreira com um CD intitulado Sivuca Sinfônico, em que homenageia justamente o "rei do baião", fechando um círculo elegante. Em passagem recente por São Paulo, o acordeonista francês Richard Galliano, um de seus vários discípulos, comentou: "Um dia, Sivuca me disse: é uma coisa louca, parece que toda minha energia vem de Luiz Gonzaga". "É um gênio, abre os horizontes" As influências do mestre são detectadas nos recônditos menos esperados, como foi o caso dos escandinavos nos anos 60. Outro dos grandes entusiastas do mestre mundo afora é o acordeonista René Lacaille, da Ilha da Reunião, radicado na França. "Conheço bem os acordeonistas da África e da Europa e não encontrei outro como Sivuca em lugar nenhum do mundo; ele é um gênio, abre os horizontes", disse o músico ao Estado, durante sua passagem pelo Rio, em 2001. Os CDs Sivuca Sinfônico (Biscoito Fino) e Terra Esperança (Kuarup), ambos lançados em 2006, revelam que o grande músico mantinha viva a predisposição ao virtuosismo, que os coloca entre seus trabalhos antológicos. No primeiro, homenageou Luiz Gonzaga (1912-1989) com Rapsódia Gonzaguiana e Concerto Sinfônico para Asa Branca, criando variações sobre temas do mestre. Recriou também dois de seus clássicos (João e Maria e Feira de Mangaio), uma peça semi-erudita também de seu acervo (Aquariana) e impressiona pela desenvoltura com que interpreta desde uma peça complexa Paganini (Moto Perpétuo) até um choro de Luperce Miranda (Quando me Lembro). Adeus, Maria, Fulô, regravada pelos Mutantes Em Terra Esperança, o músico reuniu 11 dos mais representativos grupos de instrumentistas de João Pessoa, incluindo o refinado Quinteto da Paraíba, o JP-Sax, a Brazilian Trombone Ensemble e o conjunto de câmara Quinteto Uirapuru. O show de lançamento do CD foi registrado em DVD. Com o Uirapuru também dividiu um álbum inteiro em 2004, Sivuca e Quinteto Uirapuru (Kuarup), unindo sanfona e cordas em temas novos e consagrados. É provável que Sivuca seja mais lembrado por seus temas com letras, de apelo mais popular. Primeira composição de sucesso do músico, Adeus, Maria Fulô (com Humberto Teixeira) ganhou novo fôlego ao ser regravada pelos Mutantes no auge do tropicalismo. Desde o de Chico Buarque e Nara Leão, em 1977, a temática infantil de João e Maria atravessou décadas, desde os anos 70. Feira de Mangaio virou um clássico irresistível do forró na voz de Clara Nunes e dele próprio. O dueto com Fagner em No Tempo dos Quintais (também divinamente gravada por Elizeth Cardoso) é outro de seus momentos marcantes. Seu primeiro DVD, O Poeta do Som, produzido e dirigido por Glorinha Gadelha, contou com a participação de 200 músicos da Orquestra Sinfônica da Paraíba, além dos grupos citados com quem dividiu o CD. Depois de rodar o mundo, Sivuca voltou a morar em João Pessoa, para tratar melhor da saúde. No entanto, ironizou numa entrevista: "Vim para Paraíba para descansar, mas nunca trabalhei tanto na vida". Leia poema de José Nêumanne Pinto para Sivuca A bênção, maestro! A glória, para Sivuca, não se reduz à fama nem se conta em notas, as moedas sempre falsas a trocar de mão. Pois a glória de Sivuca tem nada a ver com fortuna. A glória de Sivuca é onça caetana e é légua tirana, uma mágoa insana. Ela tem a ver é com a sorte, com a sorte até pode ser, mas não a sorte no jogo e, sim, a sorte no amor. Pois a glória é menina, a glória é moça, seu nome é severino e é nome de mulher. Pois é, a glória é mulher. E também é melhor: é gáudio, é orgia, é folia, carinho, estripulia. Para aquele moço de Itabaiana, a glória sabe o que é? É entrar no Metropolitan Opera pela porta da frente e pelo poço da orquestra, essa cacimba em si, esse rio em fá, esse mar sem mi, esse povo sem dó, esse sertão que é só: a glória é pó, é pó e é pó. A glória, para nosso mestre, é uma banda inteira e é alva, albina, é fina: a glosa do verso torto e a tosa da rima acima, é subir aos céus na tocata e fuga de Bach e descer aos infernos num tema de Miles Davis. E tudo num instrumento camponês, uma sanfona sacana, uma safena safada, um fole de oito baixos e tantos outros altos a resfolegar e a respirar o alento todo do cosmos, o justo susto do caos. Pode até ser o violão de Pata Pata por trás de Miriam Makeba, mas de dentro da África inteira em feiras de mangaio em chinelos de rabicho, num choro de cor e dor, riso da alma e ônus do amor. A mera prova sublime de que a vida é música e a morte é máscara: uma canção de nanar nenê, uma cantiga de amigo, o Bolero de Ravel na Praia do Jacaré e o réquiem que Mozart fez para o próprio enterro. Ela vem no berro primevo do guri expulso do ventre, o morno ventre materno. É ainda a república dos sonhos e o império dos cinco sentidos: a vista curta, o passo largo, o tato esperto, o couro cru, um gosto azedo de pitomba verde e os sons barrocos dos carrilhões das catedrais de Colônia, Paris, Veneza e Patos. A glória é a mãe do santo, o porre, o pranto. A glória é um manto: a sagrada lã do profano clã. É mais o forró forro do banzo negro e o frevo rasgado de nós, cativos da paixão, amém!

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