Sérgio Ricardo relança cordel de Drummond

Ele musicou Estória de João-Joana o único trabalho no gênero do poeta, cantado por Chico Buarque de Holanda, Alceu Valença, Elba Ramalho, Geraldo Azevedo, João Bosco e Telma Tavares

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Por Agencia Estado
Atualização:

No início dos anos 80, o compositor Sérgio Ricardo procurou o poeta Carlos Drummond de Andrade com a proposta de musicar seu cordel - o único trabalho no gênero do poeta - Estória de João-Joana. A afinidade intelectual, com tudo o que isso significa, que os aproximava revelou-se ainda maior pelo entusiasmo do poeta com a idéia. Sérgio trabalhou durante meses sobre a obra. Escreveu os arranjos, encomendou as orquestrações ao maestro, também compositor e regente, Radamés Gnattali e, em 1983, lançava o disco. Cantava todas as músicas da peça. Vivia-se o início dos anos mais sombrios da música brasileira, com tudo o que era de qualidade sendo banido das rádios, televisões, gravadoras. O elepê, independente, teve a natural tiragem pequena, rapidamente esgotada. Quase 20 anos depois, Estória de João-Joana volta ao mercado, em CD. Não é o mesmo disco: mantiveram-se os arranjos de Radamés, mas, além de Sérgio, cantam o cordel Chico Buarque de Holanda, Alceu Valença, Elba Ramalho, Geraldo Azevedo, João Bosco e Telma Tavares. A nova edição é um lançamento do selo fonográfico Rádio MEC, do Rio, uma gravadora que tem como dístico a frase "Passe Livre para Criar" - um selo pequeno, ainda iniciando atividade. O lançamento vai ser amanhã, a partir das 19 horas, quando autor e participantes recebem o público no Bar do Tom, na Rua Adalberto Ferreira, 32, no Leblon, na zona sul carioca. Vai haver, mas ainda não se sabe quando, um lançamento oficial em São Paulo. "Meu irmão, o sucedido/ Em Lajes do Caldeirão/ É caso de muito ensino/ Merecedor de atenção./ Por isso é que me apresento/ Fazendo esta relação" - assim começa o cordão de Drummond, 30 sextilhas, versos de sete sílabas. Naqueles ermos alagoanos, João não foi ao batismo - ganhou nome porque assim decidiram os pais e, afinal, João é "nome de qualquer um", e para chamar assim um filho, não é necessário pedir licença. Cresceu, e seu muque e "era o de três muçulmanos", lavourando, embora, um tanto avexado, jamais mostrasse o corpo. De repente, João começou a inchar e, quando foram ver, havia virado Joana, escondido, com um filho grudado no seio. É que, quando nasceu, a mãe tomou decisão: "Dizendo: vai vestir calça/ E não saia como eu." No sertão, "homem é grão de poeira/ Na estrada do horizonte." Mulher, no entanto, nem isso é: "E tem que baixar a fronte/ Ante as ruindades da vida." João vira Joana - Na parte mais emocionante da saga severina drummondiana, a sextilha reza: "João vira Joana: acontecem/ Dessas coisas sem preceito./ Em seu colo está Joãozinho/ Mamando leite de peito/ Pelo menos esse aqui/ De ser homem tem direito." Carlos Drummond de Andrade não escreveu um cordel típico mas usou do formato para fazer a denúncia das absurdas condições de vida do sertanejo, tendo como ponto fulcral o destino cruel da mulher sertaneja, duas vezes escrava, pois "escrava de um escravo". Sérgio Ricardo também não compôs melodia convencional de cordel, usando as fórmulas do gênero, mas aplicou-se na escrita de um épico de estrutura muito elaborada, sofisticada construção harmônica e melódica em que as características nordestinas aparecem como ponto de partida e de chegada - para parafrasear Ponto de Partida, uma composição sua, anterior a essa -, lançando mão, no corpo dos vários subtemas que compõem a peça, tanto da inspiração quanto do profundo conhecimento de música. Aliar técnica e emoção foi sempre marca de Sérgio, exímio pianista, violonista, arranjador, cantor, tão bom em cada atividade quanto na de compositor. Ainda assim, ao terminar a composição de Estória de João-Joana, Sérgio escreveu os arranjos de base, mas preferiu chamar o mestre dos mestres Radamés Gnattali, a quem deve respeito e obrigação toda a música brasileira posterior aos anos 50, até hoje - para escrever as orquestrações. A primeira gravação de Estória de João-Joana teve a Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, sobre regência de Radamés. Para essa, nova, registrada em fevereiro no estúdio Alceu Bocchino, da Rádio MEC, com direção musical de Sérgio Ricardo, foi convocado para reger a orquestra, usando os arranjos originais, um descendente de Radamés, Alexandre Gnattali. Sérgio Ricardo dividiu o cordel em módulos, aos quais conferiu subtítulos - Aboio de Chamamento, cantado por Alceu Valença, Caso de Muito Ensino, cantado por ele e Elba Ramalho, Gente do Miserê, cantado por ele, Sem Mentira, por Geraldo Azevedo, Parada com Sertanejo, por Alceu, Fogo no Agreste, por João Bosco, Elba e Telma Tavares, Por Força da Natureza, por Elba, Condição Feminina, por ele, Duas Vezes Escrava, por Chico Buarque, A Lei de Seu Mandamento, por Alceu, Apenas do Saco, a Embira, por Telma, e Em Favor e Graça, por todos. Conclui cantando a última sextilha, de Minas ao Piauí. Cada um desses participantes chegou à música, por vias diversas, em função de Sérgio Ricardo. Chico Buarque já disse que, no início, não queria compor como Tom Jobim, mas como Sérgio. Alceu e Geraldinho Azevedo surgiram como atores do filme "A Noite do Espantalho", de Sérgio. João Bosco fez sua primeira gravação num dos dois volumes do projeto "Disco de Bolso", bolado por Sérgio, nos tempos áureos do Pasquim - e assim por diante. O "Disco de Bolso", que Sérgio pretende reeditar, lançou também Raimundo Fagner. Era um disquinho com duas músicas: uma com um desconhecido, outra com um medalhão. No volume em que apareceu João Bosco, por exemplo (apresentando Agnus Sei, dele e de Aldir Blanc), a outra faixa era a primeiríssima gravação de Águas de Março, de Tom Jobim. Sinfonia - Essa gente empresta, agora, sua força aos impressionantes versos e à melodia de Estória de João-Joana, qualidades reforçadas pelo formidável trabalho de orquestração de Radamés Gnattali. Como os versos de Drummond não eram os de um cordel convencional, nem a música de Sérgio a melodia convencional de um cordel, Radamés escreveu uma peça sinfônica que vai buscar na música popular - na nordestina, principalmente - sua base de estruturação. Se houver alguma coisa que mereça ser chamada de ópera brasileira, é esse disco, aqui. A gravadora Rádio MEC fechou contrato de distribuição com a Distribuidora Eldorado. Esse é seu segundo lançamento, na área popular. O primeiro foi o CD Eu e Eles, de Hermeto Paschoal, lançado no fim do ano passado.

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