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Sarah Willis leva Mozart ao universo cubano

No disco ‘Mozart y Mambo’, trompista trafega no universo mozartiano e mergulha no turbilhão popular caribenho

Por João Marcos Coelho
Atualização:

A trompista norte-americana Sarah Willis, hoje com 51 anos, tem a inquietude dos grandes músicos. Não consegue ficar bem comportada. E isso é bom, muito bom. Nada melhor do que músicos fora da caixinha para balançar preconceitos e dogmas absurdos. Resumindo: ela estudou em Londres, e, de 1991 a 2001, tocou na Orquestra Staatskapelle Berlin. Em 2001, foi admitida na Filarmônica de Berlim, onde permanece até hoje. Integra também o grupo de metais da Filarmônica e atua nos projetos educacionais da orquestra.

Sarah, fora dos padrões Foto: SEBASTIAN HAENEL

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Bem, essa é a parte convencional do currículo. Sarah também mantém desde 2014 o programa Sarah’s Music na Deutsche Welle, o canal de televisão público educativo alemão, onde entrevista músicos sem distinção de gênero. Vai de Dudamel a Wynton Marsalis, entre outros.

Na esteira de outros grandes músicos que “descobriram” a notável vida musical cubana inclusiva, Sarah conheceu a ilha quando lá foi convidada a dar uma masterclass. O fascínio que aconteceu com ela vem se repetindo ao longo dos anos. Egberto Gismonti é um exemplo. Quando conheceu as meninas da Camerata Romeu, de cordas, ficou alucinado. Elas tocam tudo de cor. E ele gravou sua maravilhosa suíte Veredas, villalobiana, com elas em Havana. O álbum saiu pela ECM. 

Com Sarah não foi diferente. Produziu quatro programas para a Deutsche Welle mostrando a diversidade da música local. E, como trompista, ficou espantada porque a grande maioria dos músicos cubanos tem formação clássica. Como não conseguem manter-se tocando Bach, Mozart e os compositores cubanos clássicos, levam vida dupla, desembarcam também na música popular, seu ganha-pão. 

Houve surpresas desagradáveis em suas aventuras pela ilha. De um lado, grandes músicos; de outro, instrumentos aos pedaços. Numa masterclass, por exemplo, ela tomou a velha trompa de uma aluna para dar um exemplo e o instrumento se quebrou em suas mãos. A aluna resolveu rápido o problema: tirou o lenço do cabelo e amarrou as partes arrebentadas. Essa cruel dicotomia entre riqueza artística e a pobreza material fez com que ela concebesse e realizasse o recém-lançado álbum Mozart y Mambo, da gravadora francesa Alpha. Parte da vendagem será doada para compra de instrumentos novos para a Orquestra do Liceu.

Mozart y Mambo é um álbum que rompe dogmas em definitivo. Muita gente vai torcer o nariz, mas também muita gente, de outro lado, vai gostar dessa postura inclusiva e libertária. Sarah diz, por exemplo, que hoje tem mais ritmo nas veias, coisa que aprendeu com os músicos da Orquestra do Liceu de Havana. Logo ela, que estudou no Royal College em Londres e pertence à orquestra mais badalada do mundo! 

Vamos a esse jardim de delícias sonoras que trafega no divino universo mozartiano e o faz mergulhar no turbilhão popular cubano. É literalmente fundir Mozart e mambo – além das coincidências de as duas palavras começarem com “m”: autêntico junto & misturado. Exemplos? Basta ouvir o rondó isolado para trompa e orquestra de Mozart, catálogo Koechel 371 em mi bemol maior. Peça curta, 6 minutos. Mas lá pelos 4 minutos e meio, na cadência, Sarah evoca um mambo. Sério. E não fica deslocado. Talvez o momento mais Mozart caribenho seja o Sarahnade Mambo, composição a quatro mãos de Sarah Willis e Wolfgang Amadeus Mozart. Aqui ela troca a excelente Orquestra do Liveu de Havana, regida por José António Méndez Padrón, por uma autêntica “street band” à New Orleans, que ela chama de The Sarahbanda. Não é só hilário. É boa música, que porém exige ouvidos sem preconceito. Em tempo: a Sarahnade baseia-se na Pequena Serenata Noturna K. 525 de Mozart.

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Antes que os puristas parem de ler esse comentário, um aviso: Sarah sola de modo ortodoxo o Concerto para trompa e orquestra em mi bemol maior, K. 447, de Mozart. Aí o espanto é outro: como músicos com instrumentos tão precários conseguem produzir música em alto nível?

Ainda no reino erudito, Sarah incorpora 18 compassos no início do movimento de concerto em K. 370b descobertos há pouco tempo considerados dificílimos e em geral descartados pelos trompistas. Pois Sarah os inclui e demonstra por que está há praticamente duas décadas na Filarmônica de Berlim. 

E aos que querem mais mambo e menos Mozart, Sarah também oferece uma curta, mas saborosa versão de Qué rico el mambo, de Pérez Prado; a lírica Dos Gardenias, de Isolina Carillo; e quase 9 minutos incendiários do clássico El Manisero, de Moisés Simon, com direito a lindos improvisos do trompetista Harold Madrigal Frias e do pianista Jorge Aragon, 32 anos. Além, é claro, dos músicos da Orquestra do Liceu de Havana, que também dão seus pitacos. Numa palavra, espetacular. Com seu bom humor, Mozart adoraria.

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