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Samba e a verdadeira malandragem

Polêmica entre composições de Noel Rosa e Wilson Batista é relembrada em estudos e em show no Sesc Ipiranga

Por Agencia Estado
Atualização:

"Se ginga fosse malandragem, pato não acabava na panela." O ditado revela que a malandragem é mais em baixo e vai além do ?malandro é o gato, que já nasce de bigode?. Em 1933, Wilson Batista de Oliveira compõe Lenço no Pescoço, no qual, ostentando o gato e seu bigode, caracteriza o jeito malandro de ser: ?Meu chapéu de lado/ Tamanco arrastando/ Lenço no pescoço/ Navalha no bolso/ Eu passo gingando/ Provoco e desafio/ Eu tenho orgulho/ De ser tão vadio.? Mas Noel de Medeiros Rosa percebe que a palavra malandro é ?derrotista?, condena o pato ao aniquilamento. Tem início a disputa - e é a fim de resgatá-la, nos 70 anos da morte de Noel, que o Sesc Ipiranga realiza esta semana o show Outras Polêmicas. Em resposta, o compositor da Vila Isabel elabora Rapaz Folgado, expressão com a qual o ?povo civilizado? deveria se referir ao malandro. Para o compositor e etnomusicólogo da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Carlos Sandroni, Noel desejava profissionalizar o malandro, cuja situação era precária. ?O reconhecimento social e a renda das composições gravadas assegurariam melhores condições para fazer as músicas?, diz. Ao se referir à precariedade, Sandroni lembra a recorrência da morte precoce e da violência relacionada à valentia, jogos e mulheres. Autora de Acertei no Milhar - Samba e Malandragem no Tempo de Getúlio, Cláudia Matos, professora da Universidade Federal Fluminense, acredita que, durante a polêmica com o rival, Noel decreta a falência da mitologia da malandragem, crescentemente combatida ao longo dos anos 30 e 40. ?Nas letras dos sambas, é possível perceber que a fase do malandro glorificado será substituída pela fase da regeneração do malandro, postura que não deixa de ser uma malandragem para contornar a censura estatal.? Há certa idealização em Lenço no Pescoço. ?Wilson Batista advoga a visão romântica, canta a condição irredutível do marginal, que ninguém domestica?, diz Sandroni. Embora não pretendesse domesticar malandro nenhum, até porque o branco e universitário Noel era um deles a seu modo, o jovem compositor reafirmava a convicção de que o samba não era exclusividade do morro, do marginal, do negro. A domesticação - ou conciliação social ou integração nacional, à escolha - estava a cargo do presidente Getúlio Vargas (1930-45 e 1951-54), cujo governo estabelece a vida ordeira aos brasileiros e instala o Estado Novo (1937-45), que reprime a boêmia e a malandragem, associadas à anarquia e contrárias à ideologia das autoridades. Malandro: ginga da palavra Depois de versejar o vadio, em 1940 Wilson Batista cria em parceria com Ataulfo Alves Bonde São Januário (?Quem trabalha é que tem razão?). ?Ele se adaptou aos tempos, o que é uma espécie de malandragem, de jogo de cintura, sem uma adesão total a Getúlio Vargas, tanto que ele compôs Acertei no Milhar?, opina Sandroni. Do mesmo ano que Bonde São Januário, Acertei no Milhar - parceria com Geraldo Pereira - é sobre o jogador que ganha 500 contos, proclama o abandono ao trabalho e promete mundos e fundos à amada, que o desperta da ilusão: ?Mas de repente/ Mas de repente/ Etelvina me chamou/ Está na hora do batente/ (...) Foi um sonho, minha gente.? A comicidade é uma das aliadas da alma malandra. Essa e outras características o ajudam a driblar o poder. ?O malandro tem a ginga do corpo, é o percussionista e o capoeira, mas tem a ginga da palavra, trabalha com a gíria, o duplo sentido, é um bom comunicador?, diz Cláudia Matos, que classifica o vadio de deslizante e camaleônico na sua atuação social. As circunstâncias históricas da cidade do Rio de Janeiro, então capital federal, vão permear a temática malandra nos anos 30, quando o samba começa a se difundir pelo território nacional como o gênero musical brasileiro. Autor de Feitiço Decente - Transformações do Samba no Rio de Janeiro (1917-33), Jorge Zahar e Editora UFRJ, em que fala da mudança do padrão rítmico do samba pela turma do Estácio - Ismael Silva, Bide, Mano Rubem, Marçal, Nilton Bastos, Mano Edgar, Baiaco, Brancura, etc. -, Carlos Sandroni credita a difusão à novidade representada pela nova cadência, à hegemonia cultural e política do Rio e aos correspondentes musicais espalhados pelas regiões brasileiras, como o coco, o samba-de-roda, o partido-alto, etc. Noel A expansão da indústria fonográfica, a oficialização dos desfiles de carnaval e o rádio influenciam na propagação da nova batida. O samba feito até hoje se cadencia no ritmo criado por aqueles sambistas - introdutores da cuíca, surdo e tamborim -, no lugar do samba-maxixe Pelo Telefone (1916), de Donga e Mauro de Almeida, grande sucesso no carnaval carioca do ano seguinte. O bum bum paticumbumprugurudum sucede ao tan tantan tan tantan, como explicou Ismael Silva ao jornalista Sérgio Cabral. Assim a pioneira Deixa Falar, escola de samba fundada pelo grupo do Estácio em 1928, teve seu deslocamento nas ruas facilitado por essa rítmica. Parceiro do pessoal do Estácio, Noel é figura importante na época pela prática de colocar segundas partes definitivas nos estribilhos de sambas, em cima dos quais se improvisavam versos que se perdiam, para depois gravá-los. Em 1932, o Poeta da Vila cantou em Feitio de Oração - parceria com Vadico -, que o samba não vem do morro nem da cidade, ele nasce no coração. Na mesma zona socialmente inclassificável, Claudia Matos põe o malandro, um ser da fronteira, nem trabalhador nem bandido, e que por isso poderia alcançar maior mobilidade na sociedade, mesmo que efêmera. ?Embora pertença às classes desfavorecidas, ele tem um pé em outros mundos, o da classe média e o da grã-finagem, aos quais chega por obra da música.? De acordo com a professora, o destaque social do vadio despertava admiração nas camadas sociais mais humildes. Wilson Batista Seguindo na disputa, Wilson Batista rebate Rapaz Folgado com Mocinho da Vila, no qual ameaça um otário, o contrário bem-comportado, de perturbar o valente - ?Se não quiser perder o nome/ Cuide do seu microfone/ Deixe quem é malandro em paz.? Noel continua em Feitiço da Vila (parceria de 1934 com o pianista Vadico), a luta pela transformação do malandro em sambista. O samba é um feitiço aceitável, sem farofa, sem vela, sem vintém, e o nome de princesa da Vila Isabel converte o samba, não mais estritamente ligado às religiões afro-brasileiras, em fenômeno decente. O bacharel não tem medo de bamba! Para Wilson, isso é Conversa Fiada, a Vila não tem feitiço, tanto que a Lua por demorar demais a surgir na noite do bairro carioca lhe impossibilitou musicar, embora o Poeta da Vila tenha afirmado que o samba de lá provoca a Lua a nascer mais cedo. Que Palpite Infeliz, Noel Rosa rebatia, samba no qual faz um salve a Estácio, Salgueiro, Mangueira, Oswaldo Cruz e Matriz e diz que ?A Vila é uma cidade independente/ Que tira samba mas não quer tirar patente?. Wilson Batista produz em 1935 Frankenstein da Vila e Terra de Cego, sem receber respostas. No primeiro, de cunho mais pesado e pessoal, escarnece da deformação no queixo do Filósofo do Samba em decorrência de problemas no parto: ?Boa impressão nunca se tem/ Quando se encontra um certo alguém/ Que até parece um Frankenstein/ Mas como diz o rifão/ Por um cara feia perde-se um bom coração.? No segundo, evoca o Poeta da Vila como bacharel e o desqualifica como sambista. Tempos depois, Noel fala com o rival sobre a vontade de colocar outra letra na melodia de Terra de Cego. Recebido o aval, compõe Deixa de Ser Convencida. Polêmica encerrada. Mas o País conviveria com as transformações operadas no malandro. Campo político Com o tempo, o sambista não é mais caso de polícia. O vadio veste o terno, a gravata e o sapato de duas cores, a indumentária que simboliza a sua regeneração, para perder a partir dos anos 1960 seu caráter escorregadio, ambíguo, segundo a professora Cláudia Matos. A admiração em torno de sua figura, que desperta alegria com a música e o bom humor, se perde. ?As fraturas sociais no Brasil se tornaram tão intensas e o corte entre ilegal e legal ficou tão dolorido, que a zona fronteiriça onde o malandro transitava sem se tornar bandido nem trabalhador desapareceu?, ela conta. A malandragem se desloca para estratos sociais mais abastados. Em Homenagem ao Malandro, Chico Buarque tipificou no fim dos anos 70 quem faz o uso da ginga: o candidato a malandro federal, o dono de contrato, gravata, capital e retrato na coluna social, que nunca se dá mal. ?O malandro é o gato que dorme no telhado pra não pagar aluguel.? É aquele que chega ao poder para proveito particular, sem cogitar a existência de dívidas de solidariedade com os semelhantes. Foi-se o tempo em que a má sorte acompanhava a malandragem, a verdadeira, como na época de Wilson e Noel, que se tornaram amigos, apesar da rivalidade. Pois, malandramente eles sabiam ter conquistado uma posição particular na História, ao debater com gênio musical um assunto maior do que eles: o Brasil. Lenço no pescoço (1933) Wilson Batista Meu chapéu de lado Tamanco arrastando Lenço no pescoço Navalha no bolso Eu passo gingando Provoco e desafio Eu tenho orgulho De ser tão vadio Sei que eles falam Deste meu proceder Eu vejo quem trabalha Andar no miserê Eu sou vadio Sempre tive inclinação Eu me lembro, era criança Tirava samba-canção Rapaz folgado (1933) Noel Rosa Deixa de arrastar o teu tamanco Pois tamanco nunca foi sandália E tira do pescoço o lenço branco Compra sapato e gravata Joga fora esta navalha que te atrapalha Com chapéu do lado deste rata Da polícia quero que escapes Fazendo um samba-canção Já te dei papel e lápis Arranja um amor e um violão Malandro é palavra derrotista Que só serve pra tirar Todo o valor do sambista Proponho ao povo civilizado Não te chamar de malandro E sim de rapaz folgado

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