Romulo Fróes reinterpreta beleza bruta de Nelson Cavaquinho em novo disco

Show de lançamento do álbum será realizado no Sesc Vila Mariana, dias 17 e 18

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Por Pedro Antunes
Atualização:

Romulo Fróes só foi conhecer Nelson Cavaquinho na entrada dos 20 anos. Era o início da década de 1990, o último suspiro da descoberta musical sem auxílio da internet. A obra de Nelson Antônio da Silva era obscura, distante dos holofotes, diferentemente de outros sambistas, como Cartola. Diante das primeiras audições, o estranhamento. O estranho bom. “Nuno (Ramos, parceiro musical de Fróes daquela época até hoje), me entregou um CD ou um vinil”, recorda-se o músico de 45 anos. Nunca havia ouvido algo “desagradável e defeituoso”, conta. Ouviu Pode Sorrir e ficou embasbacado.

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Pode sorrir pra quem você quiser, pode até dizer que não me quer / Não precisa me humilhar”, cantava Cavaquinho, aos ouvidos recém-chegados de Fróes. “Se você me der adeus não pense mais em mim / Que ficarei com Deus”, sentencia, por fim. A finitude, a presença da morte, a melancolia do abandono e solidão, encaixados na crueza de voz e violão, expunham o melhor do carioca morto em 1986, aos 74 anos. E foram ao encontro do gosto do paulistano. “Como deixaram esse cara gravar, com essa voz e esse violão?”, questionou na época “Eu nunca tinha ouvido algo tão desagradável, defeituoso, como aquilo. Tinha um jeito de tocar escondido. Com algo de blues. Só que os cantores de blues norte-americanos são absolutamente técnicos. O Nelson, não. É sujo, violento. Aquilo me encantou assim logo de cara.” 

A intersecção entre Cavaquinho e Fróes estava construída. E, mais de duas décadas depois, ganha uma versão definitiva. Ícone de uma música paulistana que não se prende a rótulos e cabrestos, Fróes fez sua espécie de “revisão autoral” da obra do sambista ao inserir 14 das canções assinadas pelo mestre em Rei Vadio, disco lançado pelo Selo Sesc, cujas apresentações de lançamento serão realizadas nestas quinta e sexta, dias 17 e 18, no Sesc Vila Mariana. 

Não que Cavaquinho fosse um estranho dentro da obra de Fróes. “Meus dois primeiros discos (Calado e Cão, de 2004 e 2006) eram de samba, digamos assim. No primeiro, cantei Noel Rosa, Ataulfo Alves. No segundo, tinha Cavaquinho e Batatinha”, lembra ele. “Eu penso no Nelson Cavaquinho o tempo todo. Ele está ali como uma espécie de totem.” A ideia de se fazer um disco inteiramente debruçado na obra do Rei Vadio, contudo, apareceu quando Fróes percebeu que em 2011, se estivesse vivo, Cavaquinho completaria 100 anos. 

Precisou emplacar o disco de uma forma que não lhe é de praxe. Afinal, desta vez, precisaria pagar os direitos autorais para cada uma das 14 faixas – quando grava discos solos, ou com o projeto Passo Torto, por exemplo, o faz quase compulsivamente, sem a preocupação financeira. Tentou a sorte em editais, até mesmo com o próprio Selo Sesc, mas a chance nunca veio. A efeméride veio e foi embora. “Achei que não ia mais rolar”, confessa Fróes. “Guardei a ideia intimamente. Ali, comigo, esperando uma nova chance.” 

E a ideia foi guardada até 2014, quando o próprio Sesc aceitou abraçar o projeto. “Encontrei uma outra efeméride”, ele lembra. Em 2016, completam-se os 30 anos de morte. “Acho que faz mais sentido lembrar da morte do Nelson”, brinca o músico. A finitude sempre foi tema presente dentro da melancolia do compositor. “Ficou mais interessante do que se relembrar da data de nascimento.” 

“Aí pensei: ‘Pronto, me meti nessa enrascada, agora preciso mexer com a música dele. O que nunca é algo fácil”, brinca. Chamou seus escudeiros, Marcelo Cabral (baixo), Rodrigo Campos (cavaquinho), Thiago França (saxofone barítono) e Kiko Dinucci (guitarra e violão), para a desconstrução da obra daquele que, por natureza, desconstrói amores e desamores por intermédio de pancadas no violão e a voz rústica. O time ainda conta com outros grandes nomes, como Wellington Moreira Pimpa (percussão), Guilherme Held (guitarra) e Allan Abbadia (trombone). 

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Como em tantos outros projetos dessa turma, os instrumentistas funcionam como quatro cavaleiros do apocalipse, destruindo estruturas por onde passam e erguendo novas, por ora tortas e, por vezes, resplandecentes. Há algo de anárquico ao longo de 51 minutos de Rei Vadio. É, inclusive, um reflexo da própria escolha estética de Fróes para o trabalho. Cada músico foi chamado para sessões de estúdio individuais. Ali, Fróes, que atua também como produtor do álbum, colocava os músicos para registrar suas primeiras tentativas, os arranjos mais rústicos e crus. “Não mandei as músicas para eles antes”, revela. “Eu queria ter a primeiríssima coisa que cada um deles tivesse feito. Não importava se elas soassem estranhas.” Chamava Campos para gravar algumas canções. E, depois, pedia para que Dinucci criasse sobre aquelas bases. E assim se seguiu. “De alguma forma, o trabalho de um ia interferindo nas melodias dos outros”, ele explica. 

A voz de Cavaquinho, uma marca registrada e conhecida, é emulada por Criolo na densa Luz Negra. Dona Inah, quase contemporânea ao sambista carioca, faz o canto fúnebre de Eu e as Flores – “Quando eu passo / Perto das flores / Quase elas dizem assim / Vai que amanhã enfeitaremos o seu fim”, diz a primeira estrofe da canção. Por fim, Ná Ozzetti, parceira frequente de Fróes, participa de Caminhando. No restante, o paulistano se aventura por tons mais altos ou baixos com os quais está acostumado. A ideia é entortar, mesmo. “Se quiser nomear as turmas”, ele diz, “nós somos a turma dos louquinhos experimentais que querem fazer tudo torto.” 

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