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Roger Waters transporta platéia no tempo

No Chile, abrindo ontem a turnê latino-americana de In The Flesh, o ex-líder do Pink Floyd reprisou os hits da banda ao longo de mais de três horas de show

Por Agencia Estado
Atualização:

Preparem os isqueirinhos, afiem a garganta para gritar "leave the kids alone" e levem travesseiros para sentar, porque o show vai ser longo. Ontem à noite, em Santiago, no Chile, o ex-baixista do grupo britânico Pink Floyd, Roger Waters, começou sua primeira turnê latino-americana oferecendo um show de 3h10 de duração e 26 canções no repertório, tocando para um Estádio Nacional lotado. Os jornais locais estimaram em 65 mil pessoas a multidão que foi ao show, quase 15 mil a mais do que havia no mais festejado concerto recente no Chile, o de Eric Clapton. Nem os ingressos caros (em média, cerca de R$ 240,00) afugentaram o público, que assistiu encantado ao desfile de clássicos da banda desaparecida no início dos anos 80, após divergências entre o baixista e seus companheiros (Nick Mason, David Gilmour e Rick Wright). Roger Waters mostra a turnê In the Flesh no Rio, Porto Alegr e São Paulo. Ainda há ingressos à venda nas bilheterias do Estádio e na Internet (www.ingressofacil.com.br). Sem animais infláveis voadores, nenhum porco alado, e contando apenas com projeções em telões e um som tecnicamente perfeito, Waters não decepcionou os fãs do Pink Floyd e cantou todos os grandes hits da antiga banda, como Another Brick in the Wall (Part 2), Wish You Were here, Shine on You Crazy Diamonds (esta transformada em homenagem ao ex-parceiro de banda nos anos 60, Syd Barrett), Money, Time, Comfortably Numb, Dogs e outras. Muito alto e muito magro, vestido de blazer e camiseta preta, o músico tocou ladeado pelo guitarrista Snowy White (que sua a camisa para fazer o impossível: substituir David Gilmour) e pelo tecladista Harry Waters, seu filho, entre outros. O baixista está com 59 anos, mas sua voz mantém as características de quando tinha 20, embora esteja menos potente. No público, inacreditáveis bichos-grilos de 18 anos, gente que nem estava nos planos dos pais quando o grupo lançou seu trabalho mais popular, a ópera-rock The Wall (1979), toda ela calcada no "drama" pessoal do baixista. George Roger Walters, nascido em Great Bookham (Inglaterra) em 9 de setembro de 1944, perdeu o pai, Eric Fletchers Waters, no mesmo ano em que nasceu. Fuzileiro da Rainha, Eric Waters foi vítima de um bombardeio alemão em Anzio, na Itália. Waters filho tinha apenas cinco meses. A partir daí, Waters exacerbou clichês psicanalíticos e gestou um clássico do cinema musical juvenil, também chamado The Wall, em que brandia psicodramas mal amarrados sobre a superproteção materna, a opressão feminina, o sufoco do star system, a ditadura social, a dependência química. Deus do céu, quanto desastre na vida de um homem rico... Quando tentou reeditar esse leque de frustrações no disco seguinte, The Final Cut (1983), Waters decretou a morte do Pink Floyd, certamente uma das bandas mais influentes do planeta, tanto para o bem quanto para o mal. Exemplifico com dois casos: 1) O Kraftwerk começou a gestar a grande revolução da música eletrônica influenciado pelo disco The Piper at the Gates of Dawn (1967), do Floyd. 2) E John Lydon levantou o estandarte do punk rock contra tudo o que o rock milionário e dispendioso do Pink Floyd (entre outros) representava. Voltando ao show de Waters, 23 anos após o lançamento de The Wall. Ele divide seu espetáculo em duas partes, cada uma com dez músicas em média. No meio, um longuíssimo intervalo, tempo suficiente para ir jantar em casa. E, ao final, um bis também interminável. Os clássicos estão divididos e, em meio a eles, pérolas extraídas dos sete discos-solo do baixista, como Amused to Death e It´s a Miracle. Ele evitou alguns clichês de seu próprio repertório. Não tocou, por exemplo, The Fletcher Memorial, do disco The Final Cut (1983), mas tocou desse disco Get Your Filthy Hands off My Dessert. De Animals (1977, disco que tinha na capa a fábrica inglesa que acabou virando hoje a Tate Modern, impressionante museu de Londres), ele tocou Pigs on the Wing. Mas é nas músicas "viajandonas" que o público eleva seu espírito, projetando-se naqueles tempos de psicodelia, despreocupação e fumaça. Quando ele toca Dark Side of The Moon (1973), já nos descontos do terceiro tempo, todo o espírito crítico desaparece. Ninguém se lembra mais onde estão Gilmour, Wright e Mason. Como não adianta nem sonhar mais com uma reunião do grupo, é preciso contentar-se com isso. Quando seus companheiros lançaram o primeiro disco do Pink Floyd sem ele (A Momentary Lapse of Reason, 1987), Waters foi irônico: "É uma hábil falsificação", afirmou. Waters se julga o guardião da chama. É por isso, certamente, que ele evita no repertório as parcerias. A única música assinada pelos quatro que comparece é Time. Da quase canção-vinheta de abertura, In the Flesh - Part 2, que é acompanhada da projeção daquelas imagens de animação do filme de 1980 (os martelos marchadores) ao final do show, três horas adiante, Waters controla os sentimentos da platéia com habilidade, maestria, profissionalismo (talvez até um pouco demais). Pelo menos uma das canções é nova, desconhecida para o grande público: Each Small Candle, que deveria ter entrado num novo disco-solo do baixista e que ainda não apareceu. Um dos detalhes técnicos do show é o som quadrifônico, a utilização do recurso surround para distribuir a música igualitariamente pelos quatro cantos do gramado. O público no gramado tem a sensação de estar num teatro, mas das arquibancadas o efeito já não é tão perfeito. No fim do show de Waters, passada a meia-noite, fica a sensação de que a atmosfera é a mesma, o som é bem-cuidado, os músicos treinaram bem seu papel, mas o que segura o espetáculo é a memória de um tempo que sobrevive na cabeça das pessoas. E o mais impressionante é que a maioria delas nem viveu aquele tempo. O repórter viajou a convite da organização da turnê

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