Roberto Mendes revê tradição da chula

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Por Agencia Estado
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Ele se denomina uma pessoa provinciana, sem aspirações de ficar milionário com a música e mudar da sua Santo Amaro da Purificação. Quer apenas mostrar sua arte refinada, originária da rica cultura do Recôncavo baiano, sem preocupações comerciais. "Vivo bem com o pouco que ganho com a música", diz o compositor Roberto Mendes, sem abrir mão de ritos santo-amarenses como o almoço regular no Bar do Vital, no Pelourinho, cujo dono é seu conterrâneo e faz uma maniçoba (espécie de feijoada em que se substitui o feijão por folhas de mandioca, prato típico da região de Santo Amaro) deliciosa. Com seu novo álbum, Tradução, o sétimo da carreira, Roberto Mendes realizou um sonho acalentado há 28 anos - desde quando começou a pesquisar a chula, samba característico do Recôncavo: o registro sonoro da apresentação de um grupo de chuleiros da comunidade de São Brás, formada por descendentes de escravos. Com o CD dos chuleiros, chamado por ele de "pedra bruta", vem um outro, lapidado, com 12 músicas que são a tradução daquele universo, na visão do compositor. Participam deste segundo CD Caetano Veloso, Margareth Menezes, Jussara Silveira, Grupo Barra Vento e Nico Assumpção. "A chula, na verdade, é um modo de vida, mostrado através da canção; sua melodia é baseada em encontros e desencontros, guarda compromissos com o som e o silêncio. Esse compromisso é o ponto fundamental da chula", explica. O ritmo surgiu entre os escravos que trabalhavam nos engenhos de açúcar do Recôncavo, nos séculos 17 e 18. "Essa música, que é o nosso blues, surgiu para driblar a tristeza, do mesmo modo que a culinária dos escravos, feita de restos, como vísceras e bofe, driblava a fome", diz. "Então, a chula é todo esse ritual de sobrevivência, e era usada também como uma espécie de iniciação à sexualidade", explica. Infelizmente, a rica cultura arcaica do interior do Brasil está desaparecendo, lamenta o compositor, que decidiu realizar o trabalho de preservação até mesmo para evitar que pessoas inescrupulosas venham a se apropriar da chula para fazer música de má qualidade. "Eu poderia ter demorado mais um pouco na pesquisa, mas tive medo que alguém pegasse refrões de domínio público e os usasse, de maneira irresponsável, como pagode ou qualquer outro apelido que se desse a isso", disse. Assim, Roberto Mendes armou-se de equipamento de gravação portátil, seguiu para São Brás e registrou oito horas de música, interpretadas por João do Boi, Messias e outros chuleiros da comunidade que conheceu há muitos anos, quando era professor de matemática. O som do pandeiro e das palmas têm a viola marcando o ritmo, como um tambor, com as cordas sendo percutidas. As mulheres dançam sem tirar os pés do chão, girando em torno do umbigo, no centro da chula. Ao incluir suas traduções no álbum, Roberto Mendes, introduziu na tradição a linguagem do mundo urbano, mas procurando manter a matriz rural. "Quando eu ponho o som de uma guitarra ou de um baixo no arranjo, é uma intromissão gradativa, permitida pela criação de uma linha evolutiva, de ligação, entre os dois mundos", explica. Mas o compositor não quer perder a referência do passado, como fica bem claro na letra da música Noite Perpétua, feita em parceria com Jorge Portugal: "Como eu queria/ Que o mundo girasse/ Num movimento contínuo para trás/ Quem sabe lá no passado eu ficasse/ E encontrasse um pouco de paz." Apesar da ponta de amargura pela destruição dos valores antigos, a letra, segundo Mendes, serve para chamar a atenção para esse velho mundo. "A idéia é ter uma visão do passado, ficando um pouco de costas para o futuro", disse. Ele percebe que a globalização, levada aos grotões pela televisão, é uma grande ameaça à chula e às outras manifestações culturais interioranas. "A televisão está formando outros valores, nos descendentes desse povo", constata. "Os meninos do Recôncavo preferem tocar pagode, em vez da chula", lamenta, acreditando que, ao gravar Tradução, tenha dado uma contribuição significativa para a preservação daquela arte. "Oxalá o trabalho estimule outras pessoas a fazerem coisa semelhantes." Dever do Estado - O compositor sabe que seu novo álbum não é comercial - e que talvez nem toque no rádio. "Acho que o dever de preservar a cultura de um povo é do Estado, pois a indústria cultural não está interessada nisso, quer apenas lucrar com produtos", disse. "Vou fazer a minha parte, toco em qualquer lugar, na sua casa, no aniversário do vizinho, é só chamar", brinca. O projeto Tradução teve apoio do governo da Bahia e está sendo lançado pela gravadora paulista Atração (www.atracao.com.br). Roberto Mendes ficou tão envolvido com a elaboração do trabalho que, pela primeira vez, não terá uma de suas composições no próximo disco de Maria Bethânia, sua amiga e intérprete perferida. "Quando componho uma música, Bethânia é a primeira pessoa a quem mostro", lembra. "Durante toda a minha vida ela gravou minhas composições, e isso, de uma certa forma, me põe numa situação delicada, pois Bethânia é muito exigente, o que torna difícil para mim trabalhar com outro cantor."

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