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Rincon Sapiência lança arrojado disco de estreia, 'Galanga Livre'

O rapper paulistano apresenta trabalho catapultado pelo sucesso de 'Ponta de Lança'

Por Adriana Del Ré
Atualização:

Quando a reportagem do Estado chegou a Cohab 1, em Artur Alvim, zona leste de São Paulo, o rapper Rincon Sapiência, de 31 anos, estava cercado por uma garotada. Essa geração mais nova não conheceu Rincon como morador do local, andando para cima e para baixo por aquelas ruas, mas, sim, por meio de suas músicas. Nascido e criado ali, Rincon Sapiência, nome artístico de Danilo Albert Ambrosio, não vive mais naquele conjunto habitacional, de predinhos simpáticos e clima de interior, há coisa de 9 anos. Mas prevalece a velha máxima: o rapper saiu da Cohab, mas a Cohab nunca saiu do rapper. Sua família também não mora mais lá, mas ele continua a visitar os amigos, e o local está ainda muito vivo nas suas memórias – e nas suas canções e nos seus clipes. Daí a importância de marcar a entrevista com o rapper ali. 

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“Sempre fiz questão de fazer meus trabalhos aqui para ter esse lance de identidade”, conta Rincon, ao Estado, com voz ponderada, sem pressa com as palavras, numa mesa de um boteco da região. Foi na Cohab que ele filmou, por exemplo, o videoclipe de Ponta de Lança (Verso Livre), que foi lançado no fim no ano passado, e, em pouco mais de dois meses, teve mais de 3,5 milhões de visualizações no YouTube – atualmente, está quase nos 6 milhões – e mais de 1,8 milhão no Facebook. O clipe, de fato, tem uma combinação poderosa de imagens e sons, com influências africanas. Ponta de Lança, de autoria dele, é o ápice e, ao mesmo tempo, fecha o primeiro álbum da carreira de Rincon, o recém-lançado Galanga Livre. Com a agenda lotada, o rapper fará show de lançamento e sessão de autógrafos do disco na próxima terça, 27, às 19h, na Fnac Paulista, e, em 29 de julho, se apresenta no Áudio Club, também em São Paulo. 

“O álbum tem um processo total de um ano e meio, quase 2 anos, de mixagem, produção, pós-produção, mas a Ponta de Lança foi uma música em que aconteceu tudo muito rápido: gravação do clipe, produção, e tudo, e ela surgiu dessa rapidez, porque, durante muito tempo, eu só saía para me entreter quando ia trabalhar. Aí comecei a sair para me divertir mesmo, e curtir a noite e o comportamento da juventude preta atual, que passa pelo lance de estética, de ‘meu corpo, minhas regras’. Uma série de coisas que são novas para mim partiram desses lugares que comecei a frequentar”, afirma. 

O rapper na Cohab 1, em Artur Alvim, na zona leste: obra inspirada no lugar onde ele nasceu e cresceu. Foto: Rafael Arbex/Estadão 

Após essa fase de observação – e, por que não?, de estudo –, Rincon achou que, para estabelecer “um diálogo com a juventude preta principalmente”, como ele explica, precisaria também colocar em suas músicas signos que conversassem com eles. Nascia Ponta de Lança. “É a música mais despojada, é a que mais tem a cara da juventude, e musicalmente percebo que essa juventude consome muito o trap e o funk, que são duas vertentes musicais que aparecem nela: ela começa numa onda do funk e, depois, aparece na onda do trap. Acho que é uma música que eu ganhei vendo o ambiente, o movimento, a postura das pessoas. Eu falo isso porque, quando eu tinha a idade dessas pessoas, meus 20 e poucos anos, era um pouco mais careta, o lance do rap tinha uma resistência a você colocar uma roupa diferente, a estar com um corte de cabelo diferente. Assim, quando passei a frequentar esses ambientes e vi que estava tudo transformado positivamente, isso acabou me inspirando para compor a Ponta de Lança.” 

Com clipe lançado pouco tempo depois, na véspera do carnaval, Meu Bloco faz uma mistura do rap com o trap e o samba. Exaltação à cultura do carnaval, a música também foi feita nos 45 minutos do segundo tempo, brinca Rincon, para acrescentar “um pouco mais de calor e de descontração” ao disco. “Acredito muito, como linguagem musical, que o rap brasileiro tem que ter um diálogo cultural com o Brasil. A gente bebe muito da fonte norte-americana, mas acho que nem tudo da cultura norte-americana conversa com nosso jeito latino de ser”, compara. “Essa música ressalta muito a linguagem musical que eu quero implantar que chamo de afrorap, que é você partir de vários pontos da musicalidade preta, de origem afro, que pode ser samba, ciranda, maracatu, carimbó, e dialogar isso com o rap. E também trabalha com a cultura popular, que é o carnaval, que tem a ver com o Brasil.”

Esse diálogo bem engendrado do rap com outros gêneros vem desde a primeira faixa do disco, a ótima Crime Bárbaro (Rincon/Tom Zé/Valdez) – antecedida por uma introdução. Isso diz muito sobre a eclética formação musical de Rincon, que passa, claro, pelo rap – graças à influência do irmão mais velho, que ouvia grupos como Consciência Humana, Racionais MC’s, Pavilhão 9 e tantos outros –, mas também por rock, pop, samba, black norte-americano. “Cresci ouvindo Michael Jackson, Marvin Gaye, o samba mais antigo e também samba dos anos 1990, o Katinguelê, Art Popular, esses grupos que tocavam na rádio quando eu tinha uns 7, 8 anos.” Na adolescência, veio a turma do rock nacional, como Charlie Brown Jr., Planet Hemp e Skank. 

Do rap, Rincon considera Racionais como seu grande influenciador, mas aponta outras peças-chave na construção da sua própria música, como o rapper Xis, que veio da Cohab 2. “O rap dele que me pegou foi Us Mano E As Mina, em que fala sobre o Bronx, o time da quebrada dele. O meu primeiro rap é a mesma coisa: fala do time da quebrada daqui, dos manos, das minas, do samba. Acho que é uma característica do rap da zona leste. Durante muito tempo, o rap contava sobre a realidade mais ácida da rua, que passava pelo crime, pela violência policial, pelo racismo, e o Xis era um cara que falava do Corinthians, de relacionamento afetivo, era mais despojado.”

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Para o mundo. A música extrapolou o campo da contemplação, da admiração. Em 2000, ele fez parte de sua primeira banda, Munições da 38, que formou com amigos da Cohab. “Eram bateria e duas guitarras. E eu tinha aquela voz de criança, de adolescente, mudando, não sabia impor ela direito.” Mas eles impressionavam o público local por causa das letras autorais, em meio a tantas bandas que faziam cover. A banda durou um ano. Rincon, então, montou projetos. Em paralelo, trabalhava em empregos formais. Em 1998, ele começou a criar seu nome artístico. Primeiro, veio Rincon, por causa da semelhança com o jogador de futebol.

Depois, acrescentou Sapiência, pelo significado da palavra estar relacionado a conhecimento das coisas divinas e humanas. >Em 2010, ele lançou o clipe de Elegância, cuja boa repercussão o incentivou a tomar uma decisão importante: deixar seu último emprego formal, no telemarketing, para se dedicar integralmente à música. “Passei a viver do rap, viajando, tudo partiu dessa música.” Em 2014, lançou um EP com uma coletânea de dez músicas suas, mas diz que Galanga Livre é, de fato, seu disco de estreia, um trabalho com conceito e identidade musical. 

Galanga Livre chega num momento particularmente inspirado da cena do rap brasileiro, com bons trabalhos da nova e da antiga geração. Rincon vem com um álbum arrojado, com uma musicalidade que conquista o ouvinte desde o início e com letras que ora exaltam a negritude, como A Coisa Tá Preta (Rincon/Paulinho da Costa/Octavio Bailly Jr./Claudio Slom) – e o próprio nome do disco homenageia o lendário Chico Rei, monarca africano que libertou os escravos no Brasil; ora falam de amor, como Moça Namoradeira (Rincon/Lia de Itamaracá); ora são crônica do cotidiano, como A Volta Pra Casa (Rincon). Ligado em poesia, o rapper cria uma fluência das letras das canções com frases curtas. “Às vezes, muita informação desinforma. Essa rítmica poética ajuda as pessoas a entenderem o que estou falando, a curtir e a dançar. Foco muito mais na malemolência, na mandinga, do que propriamente na força”, diz. 

Já com um dos melhores álbuns do ano em mãos, Rincon Sapiência parte, em agosto, para apresentações na Europa, incluindo França e Espanha. E a garotada que costuma tietar o rapper quando ele visita sua antiga morada vai poder falar: Rincon saiu daqui da Cohab para o mundo.

Veja o clipe 'Ponta de Lança':

Veja o clipe 'Meu Bloco':

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