Ricardo Herz coloca o violino na ponta da música instrumental

Ao lançar dois discos arrebatadores quase ao mesmo tempo, um com o pianista Nelson Ayres e outro com o violonista Yamandú Costa, músico se torna uma referência à nova geração

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Por Julio Maria
Atualização:

Uma daquelas pequenas revoluções invisíveis tem um jovem músico chamado Ricardo Herz na ponta. Esse violinista de 39 anos já tem feitos de sobra para estar entre os melhores de sua geração, com uma estrela grande de compositor fazendo a diferença.  As quebras de resistência começam por seu instrumento, o violino, que poucas vezes no Brasil esteve bem acomodado em ambientes que não fossem os mais eruditos. Quando começou sua carreira, em 2004, com um terceiro lugar no Prêmio Visa de Música Instrumental, o instrumento ainda entrava no popular brasileiro com certa dificuldade. Hoje, graças a ele e a outros músicos da geração pós 2000, como o francês Nicolas Krassik e a brasileira Carol Panesi, um equilíbrio maior começa a existir. Foram duas gerações de músicos do meio instrumental, dos anos 60/70 e a seguinte, 80/ 90, sem violinistas de relevo além dos mestres rabequeiros.

Ricardo Herz e o pianista Nelson Ayres Foto: AMANDA PEROBELLI/ESTADÃO

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Herz tem duas mostras mais recentes do protagonismo que o violino começa a assumir no que alguns chamam de jazz brasileiro e outros, simplesmente, de música instrumental. A primeira é um álbum estupendo lançado no final de 2017, ao lado do pianista Nelson Ayres. São todos temas originais, com exceção de Maracangalha (Dorival Caymmi). A parceria tão comum na música clássica, piano e violino, parece ter um complemento fisicamente natural. E para Herz, isso tem explicação. “O piano é um instrumento completo, como dizem, mas não tem a sustentação das notas por muito tempo. Os ataques nas teclas não podem durar. Já o violino é como a voz humana, as notas soam pelo tempo que o músico desejar.” Por isso os clássicos optaram tanto por esse formato? “Acho que é a tal seleção natural da vida. Só fica aquilo que funciona mais.”

Ayres é conhecido por ser um homem generoso, de trato e sorriso fáceis. “E dizem que, com o tempo, o músico começa a tocar algo o mais próximo do que ele é em sua vida.” Pode ser isso que se ouve no dueto. As intensidades, por exemplo, em Céu de Outono, de Ayres, ou em Mercedes, de Herz, mostram o piano servindo ao violino por muitas vezes. E assim seguem em Upa, Chorinho pro Sion, de Ayres (uma homenagem a Roberto Sion, outro dos mais relevantes músicos do País), Valsa Tímida, Velha Senhora, Inocente, Salsinha com Limão. A última, Seu Domingos, parece escrita por lágrimas. E foi. “Eu a fiz assim que soube que Dominguinhos não iria mais estar com a gente (o maior sanfoneiro do País morreu aos 72 anos, em 2013). Simplesmente peguei o instrumento e compus”, conta Herz. Impossível escutá-la sem imaginar o sorriso de lua de Seu Domingos.

Nelson Ayres fala assim de seu parceiro: “O que mais me impressiona no Ricardo é a questão da articulação, a forma como ele desenvolveu os golpes de arco, que da um sabor bem brasileiro ao fraseado musical. E o mais incrível é que ele partiu praticamente do zero, descobriu tudo sozinho, e ainda por cima vivendo na Europa. É um trabalho pioneiro”. Sobre o que percebe das novas gerações, Ayres continua: “O que resta ver é se a política cultural e o mercado de cultura e entretenimento criarão condições para que o Brasil aproveite dignamente essa tremenda força de criatividade que está vindo aí. E o mais interessante é que a nova geração cada vez mais se descola do erudito e do jazz, buscando novas formas de trabalhar a tradição brasileira com resultados surpreendentes”.

Esse traço das novas gerações, apontado por músicos em ação nos anos 80, o da quebra de barreiras, fica explícito no pensamento musical de Herz. Se antes da internet havia as formações segmentadas, dividindo artistas eruditos de populares, os jovens chegam hoje com técnicas e informações de repertório dos dois mundos, criando quase que uma nova linguagem. 

Fica interessante saber como Ayres ouve o resultado “popular” de violino e piano. Muda algo quando se dá uma abordagem mais livre a esse formato? “Sim, claro. Sempre digo que a diferença entre música erudita e popular é que na erudita existe o compositor (que escreve as notas) e o intérprete (que toca exatamente o que o compositor escreveu, em 99% dos casos). Na música popular, o intérprete é um coautor cujo objetivo é propor sua visão particular sobre o ‘esqueleto’ de uma composição – o executante pode mudar o tom, o andamento, inventar, reharmonizar… É o que fazemos no duo, cada vez que tocamos uma música o resultado é diferente. O que torna o duo diferente é ouvir esse tipo de música semi-improvisada numa formação instrumental tão característica da música erudita.”

A segunda frente de Herz, ainda mais recente, está na parceria com o violonista gaúcho Yamandú Costa. Em outra esfera, com outras características, o encontro com o violão de mais ataques parece fazer Herz seguir um outro caminho. Mas são apenas suposições.  Muito do encontro com Ayres volta a acontecer com Yamandú. O violão tem duração ainda mais curta das notas e o Yamandú de hoje não é mais o mesmo do jovem que também passou pelo Prêmio Visa e venceu, em 2001. Quando surgiu, o jornalista Tárik de Sousa o apelidou de “Jimi Hendrix do violão”, tamanha a fúria em seus dedos. Mas havia um preço a ser pago ali. A velocidade levava a alguns atropelos de notas, a alguma sujeira em uma linguagem de arroubos e certa imprecisão. Em temas como Remanso, com Herz, ou mesmo nos mais ágeis, como os incríveis Mourinho ou Chamaoquê?, a limpeza de sua linguagem o elevou a um degrau mais alto. Além de ter a explosão, Yamandú alcançou a serenidade.

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“Quanto mais treino, mais sorte tenho”, diz sorrindo Herz, parodiando o jogador Ronaldinho Gaúcho ao lembrar da quantidade de ensaios antes de entrar no estúdio com Nelson Ayres. “Ensaiamos como loucos, foram uns 30 dias.”  Seus treinos começaram bem cedo. Herz foi estudar música com dois anos e não parou mais. Era erudito no início e seguiu por um bom tempo assim. Cursou música na Universidade de São Paulo (USP), passou um ano pela Berklee, nos Estados Unidos, morou na França (dos maiores violinistas do jazz, Stéphane Grappelli e Didier Lockwood) por oito anos, formou grupos de forró no Brasil e criou seu trio instrumental, com o percussionista Pedro Ito e o violonista Michi Ruzitschka. São agora nove discos em uma carreira que fortalece também quem está a seu lado. Herz coloca o violino onde ele jamais esteve na música instrumental brasileira.

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