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Renato Braz canta o Brasil que não está na TV

As heranças ibérica, africana e indígena estão no trabalho do vencedor do Prêmio Visa, que, embora ignorado pela indústria da música, é celebrado como um dos melhores cantores da atualidade por nomes como Edu Lobo e Dori Caymmi

Por Agencia Estado
Atualização:

Com o dinheiro do prêmio - os R$ 100 mil que recebeu, como vencedor da quinta edição do Prêmio Visa de MPB -, Renato Braz quer produzir o disco de Bré, seu percussionista, que sabe de cor e de coração os cantos caipiras de Bicas, em Minas Gerais; produzir o disco de China, por certidão Gerson Oikawa, violonista e guitarrista que toca com eles dois, há mais ou menos dez anos; e comprar um apartamento, para não se preocupar mais com aluguel. "Sou músico da noite", ele explica. "Nem sempre o trabalho é bastante para bancar as contas." Essa não é a história de um sujeito bonzinho que, por ser assim, venceu um concurso importante. Essa é a história de um dos maiores cantores da música brasileira, expoente maior de sua geração. Eventualmente, o leitor jamais terá ouvido falar em Renato Braz. Como, perguntará, pode alguém ser um dos melhores de seu ofício e não ser conhecido? Infelizmente, com a música brasileira, é assim que tem sido. As grandes gravadoras, a quase totalidade das emissoras de televisão e rádio trabalham juntas pelo negócio da música - não pela música. Renato Braz não se enquadra nos modelos do sucesso de momento. Então, não aparece. Ou aparece para círculos restritos - os freqüentadores da noite paulistana, os que procuram discos de gravadoras alternativas para saber o que há de novo e o que é bom no que há de novo. O talento de Renato Braz já o tornou objeto de admiração de Edu Lobo, que o considera um dos melhores cantores do Brasil, ou de Dori Caymmi, que vai mais direto e o considera o melhor cantor do Brasil. Dori sai de Los Angeles, onde mora há 20 anos, e vem a São Paulo para fazer arranjos para Renato Braz. Fez mais: em 1998, quando Renato lançou seu segundo disco, História Antiga, com arranjos de Dori, o Caymmi veio participar do show de lançamento, realizado no Sesc Pompéia. Dori acaba de gravar o disco Contemporâneos, em que interpreta música de seus, isso mesmo, contemporâneos. Tem como convidados a irmã, Nana Caymmi, e Chico Buarque e Caetano Veloso. E Renato Braz. Cantam juntos a canção Flor das Estradas, de Dori e Paulo César Pinheiro. Foi de Dori e Paulinho Pinheiro uma das músicas - Desenredo - que Renato Braz cantou na sexta-feira, no DirecTV Music Hall, onde se realizou a final do 5.º Prêmio Visa de MPB - Edição Vocal. As outras duas canções que escolheu foram Onde Está Você, de Oscar Castro Neves e Luverci Fiorini, grande sucesso, nos anos 60, na voz de Alaíde Costa, e Tristeza do Jeca, de Angelino de Oliveira, canção que todos conhecem. "Mas você sabe que o nome do Angelino não está na Enciclopédia da Música Brasileira?" - Renato, por natureza, manifesta mais espanto do que indignação. "Você sabe que a BBC abria seus serviços com Tristeza do Jeca? É impossível ser cantor, no Brasil, e não olhar para um criador como Angelino de Oiveira", diz. O Prêmio Visa é uma das raras janelas existentes para quem pensa assim. O concurso foi criado em 1998, com produção da Rádio Eldorado e patrocínio dos cartões Visa. Em sua primeira edição, naquele ano, contemplou instrumentistas. O primeiro lugar foi dividido pelo pianista André Mehmari e pelo contrabaixista Célio de Barros. Entre outros talentos revelados na ocasião está o do bandolinista Hamilton de Holanda, hoje uma figura de relevo no universo da música instrumental brasileira. A segunda edição do Visa premiou cantores. Venceu-o Mônica Salmaso, uma companheira de geração de Renato Braz - aliás, eles cantavam juntos, na noite, e, muitas vezes, nos palcos dos bares dedicados à música, fizeram dupla, à Cascatinha e Inhana, para cantar a mesma Tristeza do Jeca do repertório vencedor deste ano. Em 2000, o Prêmio Visa contemplou os compositores. O vencedor foi o paulistano Dante Ozzetti. Findo o ciclo, o prêmio voltou ao início - no ano passado, a nova edição de instrumentistas revelou para o Brasil o gênio do violonista gaúcho Yamandú Costa. O nosso foi o ano de Renato Braz. No ano que vem, mais uma edição para compositores. O 5.º Prêmio Visa de MPB recebeu quase 2 mil inscrições, vindas de todo o País. A pré-seleção indicou os 24 que participaram da etapa eliminatória. Desses, 12 passaram à fase seguinte, semifinal. Dos 12 saíram os 5 finalistas. Foram eles, por ordem de apresentação (decidida por sorteio, tendo como referência a Loteria Federal): Paula Santoro, de Minas Gerais; Marcelo Pretto, de São Paulo; Lucila Novaes, de Avaré, interior do Estado; Renato Braz, da capital; e o quinteto baiano Banda de Boca. Eles dispuram os R$ 200 mil do prêmio. Renato Braz, vencedor, ganhou a metade da quantia, mais o direito de produzir um disco pela Gravadora Eldorado - o pacote inclui shows de lançamento do disco, em capitais. A Banda de Boca ficou com o segundo lugar. Ganhou R$ 50 mil. Paula Santoro foi a terceira colocada e recebeu prêmio de R$ 30 mil. Lucila Novaes e Marcelo Pretto receberam R$ 10 mil, cada. O público, que lotou o DirecTV Music Hall, também votou. Deu o primeiro lugar a Renato Braz, que, com isso, ganhou uma viagem de uma semana à Itália, com direito a acompanhante. Mas não é na viagem que ele está pensando, por enquanto. "O prêmio - e tem horas que ainda parece que foi sonho, haver ganho - me deu vontade de trabalhar, de cantar mais", disse o músico. "E poder fazer show com a banda - isso é muito bom, viajar com os músicos que me acompanham há tantos anos. Não é fácil, porque eu arco com todo os custos, e às vezes vou para longe, como há pouco tempo fui para o Acre." Os músicos que tocam com Renato são o violonista e compositor Mário Gil, o contrabaixista Sizão Machado e os já citados Bré e China. Torcida - Embora houvesse no ar uma certa convicção de que Renato Braz seria o vencedor, ele mesmo não estava convencido disso. "Eu torci para o Marcelo Pretto, com aquele trabalho sincero, coisa de um estudioso das raízes da música brasileira", revela. "Para ser franco, eu estava torcendo por mim, mas achando que o Marcelo Pretto seria o vencedor", diz. Renato Braz tem 34 anos e nasceu em São Paulo, num dos centros nervosos da cidade, a Avenida Brigadeiro Luís Antônio. "Mas, por sorte, Deus me deu uma família sertaneja" - o pai, que morreu no penúltimo domingo ("Eu nem falei sobre isso, poderia parecer chantagem; os amigos me ajudaram a superar a perda", diz), era do sertão baiano; a mãe, do interior de São Paulo. Por isso, ele ouviu muito as coisas "de preto e de índio", as coisas que, na sua convicção, definem o brasileiro. E é isso que ele canta, desde que, antes dos 20 anos, começou a cantar. Lançou três discos, sempre pela gravadora alternativa Atração Musical (www.atracao.com.br): Renato Braz (1996, indicado para o Prêmio Sharp do ano seguinte); História Antiga (1998) e Outro Quilombo, que acaba de sair. A música que dá título ao novo disco é uma parceria do violonista Mário Gil (no começo da vida profissional, para contornar as dificuldades financeiras, eles chegaram a dividir um apartamento) com Paulo César Pinheiro (o formidável letrista atento, que sempre está próximo dos novos valores). Diz: "Cada negro olhar/ Sangue de África/ Centro de aldeia, bandeira, nação Zanzibar/ Da mesma veia guerreira do Povo Palmar/ Tudo palmeira de beira de mar." As palavras traduzem as convicções profundas do cantor numa identidade nacional que comunga as heranças ibérica, africana e indígena - uma cara nacional que aparece cada vez menos nos rádios, nas telas das TVs. "Mas nossa cultura é essa, que vem do povo, e nós, artistas, precisamos devolver isso ao povo", diz Renato. Na capa de Outro Quilombo (que tem participação de Dori Caymmi, violonista e arranjador, em participação especial, da faixa Na Ribeira deste Rio, dele, sobre poema de Fernando Pessoa), duas mãos negras cruzam os dedos. O canto de Renato é a reza que essas mãos brasileiras aplaudem.

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