Recordações em forma de canção: nostalgia como refúgio na pandemia de covid-19

Milton Nascimento, Legião Urbana, Guns N’Roses e outros artistas fazem parte da trilha sonora no isolamento social

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Por Camila Tuchlinski
Atualização:

De algum lugar da mente, surgem nossas lembranças. Daquela época em que você jogava futebol com os amigos no campinho do bairro. De quando você se apaixonou pela primeira vez. De um outro momento político do País. E essas recordações, muitas vezes, são revividas em forma de canção. Jônatas Manzolli, especialista em Cognição Sonora, acredita que a música e outras manifestações culturais possam ser um caminho de estabilidade. “As memórias induzidas pela música podem nos curar. Se temos um ‘minúsculo inimigo’, quase invisível, e um caldeirão de notícias falsas e muito sofrimento, a escuta musical pode ser uma forma de desenvolver a nossa musculatura emocional”, enfatiza ele, também pesquisador musical com PhD na University of Nottingham, no Reino Unido. Para Manzolli, o isolamento social em decorrência da pandemia de covid-19 nos colocou em situação de suspensão dos sentidos. “Aqueles que não são negacionistas se colocaram num exílio voluntário de afetos, amores e abraços distantes. A pressão seletiva de termos que nos reconfigurar em espaços mínimos com informação redundante, todo dia, nos induz a releituras de fatos e memórias. Precisamos ancorar nossas emoções para nos fortalecer e preservar a nossa identidade psicológica”, avalia. No fim do ano passado, fiz uma experiência e comprei uma vitrola. O aparelho, símbolo de uma ‘época retrô’, exala nostalgia do instante em que se coloca o disco até o ruído provocado pela agulha. Ao ouvir as canções da Jovem Guarda e de Johnny Rivers, pude perceber que a disposição de minha mãe, que luta contra ansiedade, estava voltando, aos poucos, mesmo diante da ameaça do coronavírus. De certa forma, lembrar dos bons e velhos tempos, desviando a angústia momentânea, foi terapêutico para ela.

O especialista em Cognição SonoraJônatas Manzolli, pesquisador musical com PhD na University of Nottingham, no Reino Unido Foto: Nato Manzolli

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De acordo com um levantamento realizado pelo Spotify, em abril de 2020, a busca por canções nostálgicas cresceu 54% em meio à pandemia do novo coronavírus. A plataforma de streaming também detectou que os usuários começaram a criar mais playlists com temática retrô. Sweet Child O’Mine, de Guns N’Roses, Se?, de Djavan, e Tempo Perdido, do Legião Urbana, foram as mais tocadas.

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“Cantar era buscar o caminho que vai dar no sol. Tenho comigo as lembranças do que eu era. Para cantar nada era longe, tudo tão bom”. Assim dizia Milton Nascimento em Bailes da Vida, de 1981. Porém, o músico jamais imaginaria que, exatamente 40 anos depois, a humanidade, diante da pandemia do novo coronavírus, buscaria refúgio em sua obra durante o isolamento social.

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Erika Godoy tinha sete anos de idade quando ouviu Canção da América pela primeira vez. Hoje, aos 26, consegue recordar detalhes do que viveu na época. “Eu estudava numa escola pública aqui do Rio de Janeiro em que fui muito feliz e tenho amigos dessa época até hoje. Uma professora trabalhou com a gente a Canção da América em uma aula. Me emocionava pela letra e, ao ouvi-la agora, consigo lembrar com riqueza de detalhes daquele momento. Eu era uma criança formando um ciclo de amizades”, afirma a jovem.

Erika Godoy, de 26 anos, que tem recordações da infância ao ouvir 'Canção da América' Foto: Arquivo pessoal

No Twitter, Milton Nascimento pediu para que os seguidores relatassem lembranças que tinham como pano de fundo suas canções. “Teve algum momento especial da sua vida que tenha tocado uma música minha? Me conta essa história!”, escreveu na rede social. A publicação teve milhares de curtidas e comentários.

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Milton Nascimento, que segue em isolamento social ao lado do filho em Juiz de Fora, Minas Gerais, se surpreendeu com a repercussão. “Quando a gente coloca uma música no mundo, é muito difícil imaginar os caminhos que ela vai seguir. E, quando li as histórias que as pessoas contaram nas minhas redes sobre a relação delas com algumas dessas músicas, foi uma surpresa muito grande. Até comentei com meu filho, Augusto, que fiquei tão feliz de receber esses relatos que, se eu pudesse, gostaria de ouvir pessoalmente cada uma dessas histórias e, mais ainda, poder abraçar todos esses fãs que me escreveram com tanto carinho. É o mínimo que eu poderia fazer diante de tamanha demonstração de amor”, disse o cantor em entrevista ao Estadão.

O cantorMilton Nascimento, que permanece em isolamento social em Juiz de Fora, Minas Gerais Foto: Augusto Nascimento

Além de Milton Nascimento, Erika Godoy tem escutado muita MPB em tempos de pandemia. “Caetano, Maria Bethânia, Chico Buarque, Elis, que é uma herança de minha mãe, que é super fã e me fez amar! Eu sempre coloco uma playlist "MPB anos 70" ou "Tropicália" no streaming e deixo rolando. Tem me ajudado bastante, principalmente porque são composições mais profundas, então me apego àqueles dizeres que me fazem refletir”, afirma. A jovem também curte o novo álbum do Emicida, AmarElo. “Eu escuto o álbum inteirinho praticamente toda semana (risos). É tipo um antidepressivo musical de doses semanais. É uma obra prima! Tudo toca minha alma: as melodias, as composições... Tudo”, enfatiza.

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Mais exemplos de que as canções podem ser terapêuticas estão em duas áreas que estudam a interação delas com o corpo e o cérebro: a Musicoterapia e a Neurociência da Música. A canção não se manifesta somente através de melodias. Há uma gama complexa de elementos: a letra, a interação entre as notas, as durações que produzem o ritmo, inclusive a ausência de som, ou seja, o silêncio. “É um fenômeno antropológico, sociológico e cultural. Portanto, sem dúvida a música 'mexe' com nossas emoções, porque é plástica e se propaga pelo corpo e mente. Se nos referimos a lembranças, nesse caldeirão de interações e possibilidades entre música, ouvinte e cultura, há uma carga muito forte de associações que estão vinculadas à nossa memória”, afirma Jônatas Manzolli. Para Leonardo Motta, de 46 anos, a música Coração de Estudante desperta um outro tipo de reminiscência. Aos dez anos, ele a ouviu, de forma sistemática, na época da morte de Tancredo Neves (que foi eleito indiretamente mas não assumiu a presidência da República), em 21 de abril de 1985, momento da transição da ditadura militar para a democracia no Brasil. “A população estava com muita esperança de dias melhores. Foi uma comoção! E "Coração de Estudante" foi como um hino do momento, impossível não se emocionar com as imagens do caixão ao som desta música e por tudo o que representava aquele momento”, diz. “Minha família comentava muito sobre tudo aquilo, éramos de classe média baixa e tudo girava na expectativa de dias melhores. Me traz nostalgia. Lembro das conversas que eu tinha tentando entender o momento e despertando um sentimento de fazer parte do País”, ressalta Leonardo.A morte de Tancredo Neves em 21 de abril de 1985.

Leonardo Motta não consegue ouvir 'Coração de Estudante' e não se lembrar da morte de Tancredo Neves Foto: Arquivo pessoal

 

Em Coração de Estudante, Milton Nascimento fala sobre o estudante secundarista Edson Luís de Lima, assassinado por policiais militares durante um confronto no Rio de Janeiro, em 1968. A história não é explícita na letra, mas as entrelinhas dão o tom: “Já podaram seus momentos, desviaram seu destino, seu sorriso de menino quantas vezes se escondeu. Mas renova-se a esperança, nova aurora a cada dia”. Em 2021, o brasileiro sente a necessidade de se agarrar a, pelo menos, um resquício de fé.

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O programa Reserva Eldorado, que vai ao ar de segunda a sexta, às 14h, em 107,3 FM, é composto por músicas que fizeram sucesso até os anos 1990 e inspiram nostalgia. Juliana Mezzaroba, produtora da atração, tem o cuidado de fazer uma ordem musical que lembre uma determinada época. "Quando pego anos 1980, tento pensar em new wave. Ou, o que faço muito, que aí já é uma memória afetiva minha, sãosequências que lembram os filmes da Sessão da Tarde. Essa semana coloquei na rádio um Don't You (Forget About Me), do Simple Minds, do filme Clube dos Cinco. Fico nostálgica de lembrar, principalmente da infância, quando coloco Beatles, Genesis, Phil Collins. E hoje, quando eu programo as músicas, é gostoso lembrar dessa época e as pessoas se identificam", afirma.

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Para a programadora musical da Rádio Eldorado, fazer a curadoria das canções antigas é uma válvula de escape diante da pandemia. "É uma maneira de escapar da ansiedade porque, muitas vezes, pego um disco e fico 'viajando' um tempo através da música. Uma coisa que não fazia antes, mas comecei a fazer, é escolher um artista, por exemplo, Tears For Fears. Programei a banda e vou pesquisar todos os hits deles para ouvir na sequência e ficar viajando no tempo com aquela banda", diz. Do outro lado do Oceano Atlântico, mais precisamente em Paris, na França, Joana Carneiro Moreira se refugia na melodia. “Ouvia ‘Clube da Esquina’ em casa, pois era um dos discos preferidos da minha mãe. Sou de 1990, então, o Bituca (apelido de Milton Nascimento) já era um ícone da música brasileira desde antes de eu nascer. O meu pai já faleceu. ‘Travessia’ é a canção que me faz lembrar dele. Em tempos difíceis, ouço ‘Tudo o que você podia ser’. Quando a saudade bate, prefiro ‘Mistérios’. Tenho muito apego à toda obra do Milton Nascimento”, conta a carioca. Ela conta que o namorado, que é francês, se emociona com as canções, mesmo sem saber o idioma: “Ele não entende nada de português e fala: ‘Esta música conta algo grande, posso sentir’. E também fica emocionado. Aprendeu rápido a gostar do Bituca! Sobre ter a mesma emoção de antigamente, fecho os olhos e lembro exatamente da minha carteira na escola ouvindo Coração de Estudante, com o sol entrando pela janela da sala de aula e a paz da voz dele”.

A cariocaJoana Carneiro Moreira, que mora em Paris, na França, e se refugia nas canções de Milton Nascimento Foto: Arquivo pessoal