Ray Charles, o Gênio, chega aos 70 anos

Filho de negros paupérrimos da Geórgia, o autor de Born to Lose teve de dobrar uma longa seqüência de tragédias para se tornar o astro completo que encantou o mundo passando por todos os gêneros, do blues ao jazz, do gospel ao rock

PUBLICIDADE

Por Agencia Estado
Atualização:

Ray Charles Robinson completa amanhã 70 anos. Palmas para a música: para o blues, para o soul, para o country, para o jazz; para a música digestiva - diz-se, em inglês, com um travo de menosprezo, easy listening music - e para a mais sofisticada; para o rock, os standarts, as novidades, o gospel - a música popular negra norte-americana. Que talvez nunca tenha sido tão bem traduzida - transmitida - do que pelo gênio a quem se deu o apelido: O Gênio. Um dos grandes sucessos de Ray Charles é a canção Born to Lose ("Nasci para Perder"). Ele é um vencedor, embora sua história acumule situações trágicas que tornariam a maioria das pessoas perdedoras. Ele nasceu em Albany, na Geórgia (a Geórgia que não lhe sai da cabeça em Georgia on my Mind não é uma mulher: é a terra natal), filho de negros paupérrimos - mas enxergava. Quando tinha quatro anos, viu o irmão morrer afogado; quando tinha sete, perdeu a visão: tinha glaucoma, como o oculista diagnosticou. Mas não tinha dinheiro para o tratamento. "Eu ficava olhando para o céu; sabia que fazia mal, mas ficava olhando para o céu e o sol, e fiquei cego", contou, numa entrevista. Tinha 10 anos quando morreu Bailey, o pai; e 15 quando morreu Areatha, a mãe. Aprendeu a ler em braile, a ler textos e notas musicais, a fabricar e consertar objetos, a tocar qualquer instrumento - numa escola para cegos, em Orlando, na Flórida, onde vivia com a família. Antes, haviam morado em Greensville, também na Flórida, onde Ray Charles sentou ao piano pela primeira vez. Tinha 5 anos. A casa, contou em outra entrevista, era a "casa da espingarda". Explicando: "Se você ficasse na varanda, alguém, fatalmente, atiraria em você." Os instrumentos musicais, dominou-os todos, muito cedo. Acabou ficando com o piano, embora fosse ótimo clarinetista, porque queria cantar. E queria obstinadamente cantar, embora seus primeiros discos fossem instrumentais (numa época em que seu trio imitava o de Nat King Cole; por isso mesmo tem uma espécie de bloqueio com (e não canta) algumas canções - como Stardust ou Nature Boy - que, não é acaso, foram grandes sucessos na voz serena de Nat King Cole. A voz de Ray Charles nada tem de serena - e poderia, com uma história assim? Foi tudo muito difícil, no começo. Estava na escola, estudando os clássicos (e, desafiando os professores, parafraseando ao piano o ídolo Art Tatum), mas perto da escola existia um café: no café, tocava o pianista Wylie Pitman, que foi seu mestre na prática da música popular, mostrando-lhe os nós da cama-de-gato jazzística. Havia também uma dessas vitrolas em que se escolhe a música - desde que se tenha uma moeda. Da juke box vinham os lamentos do blues. A história segue nos moldes clássicos - nosso João do Vale fugiu com o circo; Ray Charles saiu atrás de uma banda da Flórida que passou por Orlando. Adolescente, tinha a orquestra na cabeça e fazia arranjos para ela - hoje, faz os arranjos de cabeça e os dita para seu lugar-tenente, Joe Addams. Seguiu de banda em banda, pouco dinheiro. Conseguiu fazer arranjos - de verdade - para Joe Anderson, mudou-se para Tampa, tocou piano com os brancos do Florida Playboys - de quem nunca mais se ouviu falar - e com outros grupos. Queria sair da Flórida, mas - ir para Nova York e enfrentar todos aqueles grandes artistas que havia por lá? Não teve coragem. Preferiu um lugar menor, onde pudesse ir tecendo devagar a arte que dominaria à perfeição. Indicaram-lhe Seattle, no Estado de Washington. No caminho, Ray Charles tirou o Robinson do nome artístico, para que não o confundissem com o boxeador Sugar Ray Robinson, também negro. Fez turnês com Lowell Fulsom, formou um grupo para acompanhar Ruth Brown - finalmente em Nova York, onde não ficou; voltou para Seattle, criou o Maxim Trio, trabalhou em clubes e TVs locais e começou a ficar famoso. Fechou contrato com uma gravadora pequena, a Swing Time Records e, em 1949, gravou seu primeiro disco - a música que ficou foi Confession Blues. Passou por outras gravadoras pequenas e em 1951 fez sucesso com Baby Let Me Hold your Hand, que entrou para a lista nacional dos dez mais vendidos do rhythm and blues. Mas só quando assinou com a Atlantic, em 1954, sua carreira começou, de fato. Gravou I´ve Got a Woman e foi, de novo, para o topo da parada de r&b. É que, agora, tinha um grande grupo da indústria fonográfica para dar continuidade à carreira. E ele foi em frente. Nessa época, usava drogas. Usou-as por 17 anos, livrou-se delas e não gosta de falar no assunto. "Foi uma fase, eu a superei", descarta. Não lamenta. Passou. O que não passa é a música de Ray Charles. Se ele vier tocar aqui, amanhã, vai tocar de novo Georgia on My Mind, Hit the Road, Jack, Stella by Starlight, Ruby, What I´d Say, Born to Lose. Mas serão interpretações diferentes das que você tem em casa, e diferentes de outras que você possa ter ouvido ao vivo. Você vai, também, assistir ao surgimento de novos clássicos - ele não pára. A canção aparentemente tola vira maravilha em sua voz, por seus dedos. É por isso que, antes que ele entre em cena, o mestre-de-cerimônias pede a todos que aplaudam O Gênio, mister Ray Charles, primeiro e único.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.