Raul de Souza, o trombone e o animal que fizeram um bem danado para a música brasileira

DVD e CD 'O Universo Musical de Raul de Souza' serão lançados na próxima segunda-feira, 22, com show no Sesc Consolação, em São Paulo

PUBLICIDADE

Foto do author Julio Maria
Por Julio Maria
Atualização:

Os olhos do búfalo eram um enigma só. O bicho ficava ali parado com parte do corpo fora d’água, tarde da noite, desafiando o garoto que havia resolvido dar uma volta de barco na lagoa. Apesar de o instinto de sobrevivência mandar o jovem se lançar na água e correr sobre ela até sumir da vista do animal, algo ainda dizia que o monstro era do bem. O búfalo olhava para Raul, Raul olhava para o búfalo e, assim, um certo clima ia pintando. Quando já morriam de amores um pelo outro, só faltando a musiquinha de boate ao fundo, Raul resolveu tirar do saco o trombone que havia levado consigo. Pela primeira vez, sentia prazer de se apresentar para uma plateia silenciosa e educada.

PUBLICIDADE

O búfalo ouvia tudo, cada nota de uma música que nem título tinha. Era um improviso, o primeiro que o músico fazia sem que ninguém o mandasse às favas. “Gostei de você”, disse Raul, comovido. “Vou agora tocar uma em tom menor”, disse, e começou Angel Eyes. Quando coraçõezinhos já flutuavam sobre os chifres do animal, Raul de Souza resolveu parar. “Amanhã eu volto, viu meu amigo?” Só assim o búfalo saiu de seu estado de hipnose e partiu.

Raul de Souza se tornou doutor, o maior trombonista em atividade do País, de carreira reconhecida entre os grandes do jazz e da música brasileira, referência em seu instrumento há duas gerações. Já o animal que sumiu naquela noite ficou como o búfalo mais importante que Raul de Souza conheceu. A história virou lenda e ganhou várias versões. Uma delas dizia que Raul tocava de noite diante do mar de Copacabana. Ao perguntarem por que fazia isso, respondia estar “tocando para agradar aos animais”. “Eu nunca fiz isso em Copacabana. Esse búfalo que encontrei quando estava no barco foi em Curitiba”, lembra. Estivesse careta ou doido de cachaça, algo de que parece não se lembrar, fato é que suas plateias cresceram bastante e, assim como os animais, passaram a respeitá-lo muito. Diante das 608 pessoas que lotaram o Teatro do Sesc Vila Mariana em novembro de 2011, o clima era o mesmo que ele sentiu diante do búfalo.

Raul fez um bem bolado daquilo que lhe dá prazer. Abriu o show com Spiritual, de John Coltrane, para logo emendar seu samba Violão Quebrado. Solou bonito em A Flor e o Espinho, de Nelson Cavaquinho, para logo partir para o standard Ela É Carioca, de Jobim. E investiu pesado em outros temas seus, alguns dos quais deixaram a elite jazzista de antenas alertas ao seu talento, como Funky Man, St Rémy, Jumping Street e À Vontade Mesmo.

Do amigo trompetista Freddie Hubbart - “o maior que eu conheci”, diz ele -, entrou Up Jumped Spring, feita em duo com o baterista Art Blakey. Gente que rendeu histórias ao seu lado, tantas que um DVD não comportaria. Raul viu Hubbart se drogar em tubos até que ele mesmo, que nunca foi santo, decidiu advertir: “Hubbart, vou te dizer uma coisa: Se você não parar agora, vai acabar usando coisas mais fortes.” “Ah, dá um tempo, pastor”, respondia o trompetista. 

Freddie Hubbart seguiu para o crack e, anos depois, em 2008, seu coração parou quando ele chegou aos 70 anos. “O cara comia com farinha. Eu sabia que ia acabar assim.” O próprio Raul viveu seus infernos com a bebida, até que resolveu deixá-la falando sozinha. “Você já percebeu que todo bar é escuro?”, observa, preparando o terreno para a teoria que criou. “Os botecos são escuros porque estão cheios de espíritos perdidos que estão lá com você a cada gole.”

O DVD de Raul vem com um CD de temas ainda inéditos chamado Voilà, gravado em Curitiba, em 2010, com o mesmo núcleo de instrumentistas que participa do DVD. Um trabalho não tem a ver com o outro, mas os dois saem juntos por razões estratégicas. O nome do pacote é O Universo Musical de Raul de Souza, e será lançado com um show na próxima segunda-feira, 22, no Sesc Consolação. Um dos parceiros que estará no palco ao seu lado, também convidado no DVD, será o saxofonista Hector Costita. O registro tem ainda o piano de João Donato em uma das faixas e a flauta de Altamiro Carrilho, seu mestre e padrinho, morto em agosto, aos 87 anos. Uma biografia também está sendo preparada pelo jornalista Roberto Muggiati, ainda sem data para lançamento.

Publicidade

Altamiro rende um capítulo à parte nessa história. A imagem que aparece no DVD é seu último registro em ação. Ele chega ao palco visivelmente combalido, criando uma sensação de nostalgia prévia, deixando a certeza de que faz ali uma despedida, mas com um sorriso de sequestrar a plateia. Senta-se ao lado de Raul e toca com a flauta a belíssima linha de Vou Vivendo, de Pixinguinha. Logo depois, tocou o seu Urubu Rei e ainda voltou para fazer o tema Funky Man ao lado de Hector Costita e João Donato, chamando a responsabilidade para si e assumindo quase todos os solos. Algo que o próprio Raul não havia presenciado. “Ele não é de improvisar sobre um tema em tom menor assim. Mas, naquele dia, ele improvisou.” Hector Costita esperava seu solo terminar para entrar com o tenor nas alturas. Quando foi soprar, Altamiro lhe deu um drible e retomou o improviso. Os músicos se olharam, sorriram e entenderam que ali estava um homem querendo viver cada segundo de uma noite que, se pudesse, congelaria. Altamiro havia saído do hospital para estar ali. “Doutor, não posso deixar o Raul sozinho.” Sua última aparição se tornou um documento histórico. Pena o búfalo não ter visto. 

RAUL DE SOUZA 

Sesc Consolação. Rua Dr. Vila Nova, 245, tel. 3234-3000. 2ª, às 19 h. Grátis - os ingressos são distribuídos uma hora antes do show.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.