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Ramiro Musotto, um percussionista argentino, porém baiano

Discípulo do pernambucano Naná Vasconcelos e autor de projetos arrojados, ele se prepara para lançar no Brasil o segundo álbum-solo, Civilizacao & Barbarye

Por Agencia Estado
Atualização:

Ramiro Musotto é o mais baiano dos argentinos. Discípulo do pernambucano Naná Vasconcelos, apaixonado pelo samba-reggae, criador inquieto e detalhista, o percussionista, compositor e produtor busca sempre o inusitado para fazer um tipo de música "com características que ninguém tenha mostrado antes". Autor de projetos arrojados, ele se prepara para lançar no Brasil o segundo álbum-solo, Civilizacao & Barbarye (Los Años Luz Discos). Quem for a Salvador, onde Musotto está radicado desde 1984, pode vê-lo com a Orchestra Sudaka, às segundas e terças, no Teatro Vila Velha (tel. 71-3336-1384), tocando os temas do novo CD e do anterior, Sudaka (2004). Com título inspirado no romance ensaio político Facundo - Civilização e Barbárie, de Domingo Faustino Sarmiento, o álbum ganha edição nacional no início de março, pelo selo Cavaleiros de Jorge, distribuído pela gravadora Eldorado. Lançado em novembro na Argentina, onde ficou entre os dez melhores de 2006 na lista do jornal La Nación, o CD também já pode ser ouvido inteiro no site www.ramiromusotto.com. "Escolhi esse título porque tem a ver com o trabalho que faço. É uma análise sociológica da história argentina, aborda todos os conflitos, desde a conquista do deserto até a imigração Minha música é uma mescla de cantos tribais afro-americanos com soluções tecnológicas", diz, exemplificando a atração dos extremos em contraponto. A grafia, sem acentos, tem por finalidade, como Sudaka, alcançar dimensões universais. Multirracial Se o livro tem até um ranço racista ("era o pensamento da época", 1845), o disco desenrola-se como uma viagem sonora multirracial, reflexo da ideologia do autor. Gravado em Salvador Estocolmo, Grenoble e no Rio, o CD acolhe cantos de crianças indígenas guaranis, sons rituais de candomblé, choro de Jacob do Bandolim, mistura cangaço e tradição africana, tem sample de discurso do zapatista, reúne parceiros e cantores de Cuba (Léo Leobons), EUA (Arto Lindsay), Argentina (Santiago Vazquez), Irã (Rostam Miriashari), Bahia (Lucas Santtana), Paraíba (Chico César) e Suécia (Sebastian Notini), entre outros. Juntar ritmos tribais com beats eletrônicos pode resultar em pavoroso equívoco, como já se ouviu por aí em compilações sem personalidade. Não é o caso de Musotto. Projeto arrojado, o novo CD segue a trilha de Sudaka. Embora tenha sonoridade mais acústica que o álbum de estréia, neste ele se valeu mais ainda das ferramentas eletrônicas. Alternando temas instrumentais e cantados, o CD abre com Ronda (dele), em que Musotto toca sozinho seis berimbaus afinados, criando uma melodia de resultado surpreendente. Coerente na natureza contrastante, o álbum fecha com um antigo tema cubano, Yambú (dos Muñequitos de Matanzas), cortado de forma brusca com o verso "Al final de la jornada verás que no somos nada". Musotto mostra certa semelhança com o estilo do franco-espanhol Manu Chao, no processo de criação, na estética e na consciência sobre os problemas sociais da América Latina. "Com certeza, somos da mesma tribo. Adoro o trabalho de Manu e me identifico com ele também nas questões ideológicas, mas o que ele faz é mais homogêneo, não é tão diverso ritmicamente." Um dos pontos de ligação entre eles é o mexicano Subcomandante Marcos, do Exército Zapatista de Liberação Nacional. Como Manu, Musotto sampleou trechos de um discurso do líder rebelde e inseriu-o numa das mais bonitas faixas do CD. É Gwyra Mi, que também conta com as vozes de crianças indígenas da tribo guarani Tenondé Porã, que vivem no Morro da Saudade, em São Paulo. Berimbau Em Nordeste & Béradêro, outro lance curioso: Chico César cantando um aboio de sua canção, entremeado a trechos extraídos do LP Cantigas de Lampião (1957), gravado por um ex-integrante do bando do cangaceiro, Volta Seca. Guitarra de levada afro-caribenha encontra a chula do Recôncavo Baiano na sacolejante M?Bala (Musotto/Lucas Santtana), uma das melhores faixas. Outro destaque dançante é o choro Assanhado (Jacob do Bandolim), que ganha peso de eletro-samba com cavaquinho. Embora passe longe do óbvio do que se faz em música percussiva na Bahia, as influências baianas são evidentes na parte rítmica. O berimbau faz a ligação com a música eletrônica pelo timbre. Musotto tem, como seu inspirador Naná Vasconcelos, uma profunda identificação com o instrumento. Cada um a seu modo os dois se especializaram em superar seus restritos recursos. Na mão deles o arame esticado numa vara com uma cabaça ganha status de música. "Melódica e harmonicamente o berimbau é limitado, mas é mais rico timbristicamente", defende. "Há milhões de nuances tímbricas em uma única nota. Você pode evoluir por aí também, não só na questão harmônica e melódica." Usando um capotraste parecido com o dos violões, ele fez "um truque" para extrair as duas notas afinadas do instrumento. Com um histórico de contrastes, Musotto tornou-se um dos maiores percussionistas no país da percussão. Baiano adotado, ele, que foi criado em Bahía Blanca, trouxe know how e disciplina para o universo do samba-reggae, muito antes do boom da axé music. Na Argentina, ao mesmo em tempo que transitava pelo rock, Musotto, "obcecado por estudar, pesquisar e entender o que ouve", começou a tocar em orquestras sinfônicas aos 16 anos e já era fã de Naná ("ele mudou a minha vida") e música Brasileira. Parceiros Decidido a aprender a percussão brasileira, mudou-se para São Paulo, onde estudou com Zé Eduardo Nazário, a partir de1982. Dois anos depois já encarava os trios elétricos de Salvador e se tornava o percussionista mais solicitado para gravações e shows. Tocou com Margareth Menezes, Daniela Mercury, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Marisa Monte, João Bosco, Lenine e muitos mais. A diferença de Musotto para os outros percussionistas baianos é que ele sabia o que os demais apenas intuíam - e faziam errado. "A batida do Olodum é mais carnavalesca, a Timbalada faz samba junino", ensina. Para esclarecer melhor essas diferenças, ele está escrevendo um livro sobre o tema, com publicação prevista para este semestre. Aos 43 anos, 24 deles vividos em Salvador, Musotto já fez escola na Bahia, onde formou músicos que hoje o acompanham e pretende montar uma orquestra de berimbaus. Ademais, dá aulas de samba-reggae para europeus na Alemanha, Inglaterra, Finlândia. "Só na Inglaterra há 500 grupos de batucada feita com instrumentos brasileiros. Na Alemanha, tem mais de mil. Como o rock, a batucada é relativamente fácil de aprender, tem um apelo universal muito forte, mas no Brasil está se perdendo." Jovens europeus têm demonstrado muito interesse nessa batucada, mas tocando ritmos diferentes, como funk e drum?n?bass. Com isso, aponta Musotto, está se formando um gênero musical novo. Ao que indica, a tendência é o futuro voltar à tribo. E Musotto é um dos que estão na frente.

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