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Quatro noites numa rave com Beethoven

Aplausos e gritos para Paavo Järvi e a Filarmônica de Câmara de Bremen

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Por Redação
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A primeira impressão é que o regente estoniano Paavo, uma das três reluzentes estrelas da batuta do clã Järvi, ao lado do irmão mais novo Kristjan e do pai Neeme, conduziu por quatro noites uma Ferrari Testarossa: nas primeiras duas, na pista de testes da equipe italiana de Fórmula 1 em Maranello, a 500 km/h; nas duas restantes, teve de rodar com breque de mão puxado em ruas convencionais.

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Sumiram as mágicas sonoridades na acolhedora acústica do Teatro Municipal, entrou a dispersão acústica da Sala São Paulo. Mas em todas a sensação de vertigem foi patente. O piloto conhece tudo de sua máquina perfeita. Mais do que isso; o público sentiu-se a seu lado, compartilhando nos mínimos detalhes uma inédita rave de cerca de seis horas e quatro noites consecutivas pelo mais imponente monumento sinfônico da música. As nove sinfonias, compostas entre 1800 e 1824, mudaram a história do gênero. Quando você não sente a força de sua música, a razão é simples: a execução foi medíocre.

Que Ferrari musical é essa que atende pelo nome de Filarmônica de Câmara Alemã de Bremen? É uma formação híbrida. São 47 músicos, o número de que Beethoven dispunha ao estrear suas primeiras sinfonias. Mistura instrumentos modernos com de época, como os trompetes naturais ou o arco barroco de um dos contrabaixistas. Misturam-se as sonoridades como as práticas de interpretação. Paavo incorpora do movimento da música historicamente informada a quase ausência absoluta de vibrato nas cordas e acelera em geral os andamentos. A diminuição do volume das cordas restabelece o equilíbrio que nossos ouvidos jamais conheceram: madeiras e metais soam com mais destaque; para nossos ouvidos modernos, talvez demais, mas é isso que Beethoven queria.

E que maestro é esse, capaz de trazer Beethoven para o século 21? Ele fez do compositor motivo de uma verdadeira rave em que o público foi se conhecendo noite após noite, firmando cumplicidade uns com os outros. Vibrante, minucioso, foi aplaudido como astro pop da segunda noite em diante. A quem já está com saudades: eles têm na frasqueira outra rave, uma integral das sinfonias de Schumann em 4 concertos, que o Mozarteum, depois desse gol de placa, tem de incluir na temporada de 2014. A seguir, impressões sobre a rave:

Sinfonia n.º 1 – O minueto foi o destaque por ser o primeiro scherzo sinfônico do compositor. Berlioz chamou o rondó final de “criancice musical”. Pode ser. Ali, Paavo já seduziu o público, iniciando o ritual dos aplausos torrenciais e assobios, como numa autêntica rave.

Sinfonia n.º 2 – Em ação dinâmica e dramatização de ideias, ela vai bem mais longe que a 1.ª. O Larghetto antecipa efeitos românticos que Schubert e Mendelssohn assinaram mais tarde. Jaavi levantou a plateia no frenético finale, que já se inicia em alta voltagem e permanece incendiário até o final. Maestro e orquestra vertiginosos.

Sinfonia n.º 3 –Você se pergunta como alguém pôde fazer tantas revoluções ao ouvi-las noite após noite. Na Eroica, inverte-se a lógica vigente: o movimento final é que realiza o que os demais deixam entrever – lance de gênio que se repete no Allegretto da 7.ª e na preparação sonora do finale da 9.ª. Quem pegou a rave inteira sacou o “punch” de Paavo na Marcha Fúnebre da 3.ª, no Allegretto da 7.ª e na 9.ª – acentuando contrastes dinâmicos, alargando fraseados, acelerando andamentos (a fúnebre da Eroica de Paavo tem 4’ menos que a de Karajan, de 1963).

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Sinfonia n.º 4 – “Small is beautiful”, sinfonia curta e dançante, a caráter para a regência de Paavo, pondo ainda mais a nu os sopros. Críticos que assistiram às estreias reclamaram do excessivo espaço concedido a eles. Ora, essa era a novidade. Irresistível o famoso moto-perpétuo finale. De novo vertiginoso, de novo aplaudido de pé.

Sinfonia n.º 5 – O famoso tema do Destino foi executado em velocidade supersônica. Virtuosidade e andamento alucinante construíram uma 5.ª para não esquecer. A instrumentação encorpa-se com três trombones, piccolo e contrafagote. No fim, o espírito de rave acentuou-se pelos assobios, gritos e aplausos.

Sinfonia n.º 6 – As ovações antecipadas potencializaram-se na Sala São Paulo. Os aplausos mantiveram-se em clima de delírio ao fim da 6.ª. Na “sinfonia pastorella” você ouve, com Beethoven, os pássaros, a tempestade e a dança dos camponeses. Fagote, flauta, oboé, clarinetas, trompas, todos excepcionais. Paavo rege como se estivesse dançando – balanço mimetizado pela orquestra. Por isso, foram memoráveis o Andante molto mosso e a dança dos camponeses.

Sinfonia n.º 7 – Tem a mesma propulsão rítmica da 5.ª. Os movimentos estruturam-se em torno de motivos rítmicos. Paavo se supera com uma precisão rítmica admirável. O “mood” de dança se fortalece. Não por acaso, Wagner rotulou-a de “apoteose da dança”. E como Paavo e seus músicos não têm medo de dançar, o clímax foi o célebre Allegretto.

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Sinfonia n.º 8 – No início da última noite, Beethoven retorna ao “small is beautiful” da sinfonia n.º 4. A instrumentação encolhe aos níveis da 1.ª, o clima é haydniano. Onze anos antes de explodir o gênero sinfônico na 9.ª, olha para trás em 1813. Destaques da partitura presentes na execução: o Allegro scherzando e o finale Allegro vivace.

Nona Sinfonia – A apoteose tão aguardada desde a surpreendente cadência que abre a 1.ª sinfonia é construída nos complexos três movimentos iniciais, que exigem muito da orquestra. A “Ode à Alegria” tinha tudo para ser – e foi – o momento mais emocionante para o público. Ótimos solistas, excelente trabalho de Naomi Munakata na preparação do coral.

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