Quarteto de Leipzig exibe um ousado programa em SP

Em concerto no Masp, grupo alemão nos fez lembrar que obras de Beethoven e Brahms possuem espetacular musicalidade

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Por João Marcos Coelho
Atualização:

A palavra “fácil” não foi pronunciada pelo violoncelista Matthias Moosdorf no comentário antes do concerto, na terça-feira, no Masp. Afinal, o ousado programa do Quarteto de Leipzig compunha-se de duas obras tidas como difíceis: a Grande Fuga op. 133 de Beethoven e o quarteto n.º 2 do opus 51 de Brahms. Seriedade, profundidade e complexidade – estas, sim, ameaçaram pairar sobre o público. 

O quarteto nos fez lembrar que estas obras possuem uma espetacular musicalidade. Beethoven dizia que era um “poeta dos tons”. Para ele, a música instrumental era poética no sentido de estar um degrau acima da própria poesia. Afinal, em Beethoven e Brahms, os materiais musicais terçam lanças em estado de solitária liberdade. Beethoven pega fiapos de temas e os desenvolve dramaticamente. Adota a fuga bachiana e lhe aplica técnicas da forma sonata, escreve Carl Dahlhaus sobre a Grande Fuga: “O desenvolvimento do tema, que em Bach era intocável em princípio, tende a transformar-se em Beethoven num trabalho temático e motívico”. E arremata que Brahms transformou este recurso em princípio fundador de movimentos inteiros em seus quartetos. Primeiro compositor do século 19 a ter consciência histórica da música, sentiu como nenhum outro o peso do passado. Destruiu vinte quartetos antes de chegar ao opus 51, relembrou Matthias. Mas sabia que estava dando um passo à frente.

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Aos ouvidos do século 21, ambas soam domesticadas. O Quarteto de Leipzig, no entanto, nos devolveu seu nuclear frisson de “novidade”. O toque diferencial foi o modo como eles ressaltaram as ousadias dos dois “B” e nos fizeram compartilhar um raro momento em que o “difícil” emociona.

Praticamente meio século –1825 e 1873 – separa a Grande Fuga do quarteto de Brahms. Mas como se parecem. Aliás, como Beethoven soa mais atrevido, ousado, desafiador nas cordas de Leipzig. Uma audição mais atenta do opus 51, no entanto – e o concerto mostrou isso com clareza –, evidencia audácias encobertas no tecido das quatro vozes das cordas que Schoenberg perceberia décadas mais tarde, chamando Brahms, em artigo hoje célebre, de “o progressivo”. A noitada foi mais memorável porque o primeiro violino Stefan Azberger – como os ótimos Tilman Büning (segundo violino), Ivo Bauer (viola) e Matthias –, saído das primeiras estantes da Orquestra do Gewandhaus de Leipzig, está sendo substituído por Conrad Muck desde abril passado. Stefan, vítima do golpe “Boa noite, Cinderela” em Nova York em 26 de março, é obrigado pela Justiça dos Estados Unidos a lá permanecer até hoje, às voltas com um processo. Uma substituição como essa geralmente desmonta um quarteto, gênero no qual a interação dos músicos demora anos para ser conquistada. Surpreendeu a adequação de Conrad Muck, nascido em Dresden e ex-primeiro violino por vinte anos do Petersen Quartet, ao espírito interpretativo dos arcos de Leipzig. 

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