Paco de Lucia, o mago e seu violão

Diferentemente dos outros músicos, ele não se preocupava em ler as notas, mas em senti-las

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Por Julio Maria
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Ele estava ali. Dezesseis anos depois, o maior violonista do Planeta voltava para fazer um concerto no Brasil. Com todo o desgaste do adjetivo, maior, no caso, não era artifício de critico nem cegueira de fã. Há um caminhão de argumentos técnicos e um memorial de troféus que reforçariam a menção, mas talvez a melhor prova da constatação ainda estava sob aquilo que saía de seus dedos. Paco de Lucia foi recebido como um mago e um bruxo naquela noite de novembro de 2013 pelo público do Teatro Renaut, em São Paulo. Saber agora de sua morte seria menos devastador se um de seus últimos shows não tivesse feito no Brasil. Mas ele estava ali. Dias antes, de espanhol requentado e perguntas escritas em um bloco, a reportagem do Estado ligou para um hotel no Peru, onde Paco estava hospedado depois de um concerto em Lima. As notícias eram de que o homem era difícil, de poucas palavras e uma certa impaciência. Mas Paco estava feliz e começou a conversa com um certo humor espanhol sem risos. "As cidades estão ficando insuportáveis. Não faço mais shows porque não tenho suportado tantas pessoas convivendo nos mesmos espaços. Eu fico horrorizado vendo a forma como sobrecarregamos o Planeta." Explicava assim o fato de não vir mais para o Brasil. "Na Europa, faço shows em muitos países em pouco tempo. É tudo muito mais perto."

A voz de Paco era nítida, como se ele estivesse sentado na mesa ao lado. Estava entusiasmado com o que seria seu próximo disco, um álbum feito só com canções infantis seculares tradicionais do Sul da Espanha. "Vou lançar em breve", dizia, sem aparentar metade de seus 66 anos. Quando perguntei sobre sua dedicação ao violão, quantos anos ele havia passado trancafiado em partituras até que seus dedos se libertassem para ganhar vida própria, Paco suspirou sério: "Guitarristas que estudam muito podem ficar com a imaginação limitada pela teoria." Paco não sabia ler partitura e jamais se preocupou com isso. Quando precisava preparar um concerto com uma obra clássica, fugia com o violão para uma cidade litorânea e decorava nota por nota do que ouvia em uma fita cassete. Um suplício de alguns meses que lhe garantia a eternidade. Quando sentava-se no palco, diante de uma orquestra e ao lado de um maestro, nada podia detê-lo. Àquela altura, diferentemente dos outros músicos, ele não se preocupava em ler as notas, mas em senti-las. Quando a noite chegou, Paco estava ali. Ou melhor, deveria estar. Depois de mais de uma hora de espera, com o auditório lotado, uma voz do Renault informou que, por atrasos de aeroporto em Porto Alegre, onde ele havia se apresentado no dia anterior, o músico ainda não havia chegado. Com quase duas horas de ansiedade, quando algumas pessoas já desistiam de vê-lo e abandonavam os lugares, Paco de Lucia apareceu. Cabelos compridos atrás, quase inexistentes na frente, estava visivelmente desconcertado. Quatro ou cinco pessoas o vaiaram e foram vaiadas. Paco se sentou, olhou para seus dois violonistas, que o ladeavam com mais um percussionista e um bailarino, e começou a tocar sem dizer uma palavra. Quando terminou, ainda tenso, encarou a plateia e sentiu a onda de calor abraçá-lo. Aplausos saíam como se estivessem engasgados por muito tempo. Mais relaxado, ele conseguiu falar. "Desculpem, foi um dia terrível." Com as mãos, fez o movimento de um avião descontrolado no ar. "Pensei que iríamos morrer." Por um instante, pareceu até que Paco de Lucia fosse um homem comum com medo de morte. Que bobagem.

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