Os 30 anos da estréia de "Krig-ha, bandolo!"

Há 30 anos, numa passeata no Rio de Janeiro, Raul Seixas e seu parceiro Paulo Coelho promoviam Krig-ha, bandolo!, disco de estréia de sua carreira-solo

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Por Agencia Estado
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Há 30 anos, numa passeata no centro do Rio de Janeiro em 7 de junho, um ainda desconhecido cantor saiu com seu violão pelas ruas entoando uma canção-lamento para os pedestres - a música brasileira começava a conhecer aquele que viria a se tornar um de seus maiores mitos. Num tempo em que a mínima aglomeração de pessoas podia ser entendida como ato de subversão, a performance de Raul Seixas com a sua Ouro de Tolo desancando a classe média foi parar no Jornal Nacional daquela noite, dando impulso para os versos "Eu devia estar contente porque tenho um emprego, sou o dito cidadão respeitável e ganho 4 mil cruzeiros por mês..." ganhar outras ruas em todo o país. A intenção da passeata era promover Krig-ha, bandolo!, disco de estréia da carreira-solo do cantor baiano que seria lançado no mês seguinte. Puxado pela já conhecida Ouro de Tolo, lançada antes em compacto, e pelos hits Mosca na Sopa, Metamorfose Ambulante e Al Capone, o álbum logo estouraria nas rádios e lojas de discos. Começava assim o estrelato do primeiro bad boy do rock nacional, ainda órfão de Roberto Carlos e seu bom-mocismo jovem guarda. Com alguns anos de atraso por causa da linha dura imposta pelo AI-5, o rock feito no Pais experimentava as mudanças que no resto do mundo haviam atingido seu ápice com o festival de Woodstock, em 1969. A aura hippie da caminhada e o estilo de menestrel do artista, no entanto, tinham um suporte que estava longe do improviso. Ao dar os primeiros passos pela avenida Rio Branco, a imprensa já esperava Raul, a esta altura amparado pela poderosa estrutura da Phillips, gravadora multinacional dos principais artistas da MPB à exceção de Roberto - e que o havia contratado logo após a sua aparição no 7.º Festival Internacional da Canção, em setembro do ano anterior. Se a inusitada mistura de rock com baião do roqueiro, ainda sem barba, cantando Let Me Sing, Let me Sing pegou de surpresa o público do festival da Globo, a Phillips sabia onde estava jogando as suas fichas. Raul Seixas não era um desconhecido no meio musical: na década de 60, acompanhava os ídolos da Jovem Guarda nas excursões por Salvador com o seu conjunto Raulzito e os Panteras e, desde 1970, era um renomado produtor de artistas populares na CBS. Doce, Doce, Amor, de Jerry Adriany, por exemplo, é uma das várias músicas que compôs nesse período. Apesar da lenda (uma das muitas) espalhada por ele mesmo de que fora demitido desta gravadora por ter feito clandestinamente com os amigos Sérgio Sampaio, Miriam Batucada e o andrógino Eddy Star o ótimo disco Sociedade da Grã Ordem Kavernista Apresenta Sessão das Dez, Raul estava apenas trocando de casa: recebera um ultimato de seu chefe, que lhe disse para optar entre a carreira de produtor ou de cantor, pois ali na CBS só teria espaço para uma destas atividades. Não é difícil supor, dada a proximidade de datas, que neste momento o flerte do artista com a Phillips já era praticamente um namoro. Ironicamente, quando tomou a decisão de seguir outro rumo, o responsável por sua contratação pela mais prestigiosa gravadora da época foi Roberto Menescal, um dos pais da bossa nova, ritmo que Raul Seixas não cansava de malhar desde os seus tempos de roqueiro em Salvador. Com liberdade total na nova casa, Raul fez Krig-ha, bandolo! e mostrou a que veio. Do título tirado de um antigo gibi de Tarzan à foto da capa, da vinheta de abertura (cantando rock aos 9 anos de idade), ao seu depoimento de encerramento, ele dá no disco uma amostra do que viria nos trabalhos seguintes, com dez canções misturando protesto, misticismo, fusão de ritmos, arranjos de primeira do maestro Miguel Cidras, rocks, baladas, ironia, sarcasmo e mal-dizer. Se o disco era irretocável, o show de lançamento, no Teatro Teresa Raquel, não ficou devendo em nada ao desempenho em estúdio. Mostrando pleno domínio do palco, com uma performance de interpretações enérgicas e raivosas, conversas com o público e discursos, Raul Seixas não deixava dúvidas que um grande show-man surgia no cenário. Junto com o sucesso, veio também o trinômio sexo, drogas e rock n´ roll, que no decorrer dos anos iria causar estragos irreparáveis à sua imagem e, sobretudo, à sua saúde, ao mesmo tempo que alimentaria a idolatria ao mito. Em passagens que não deixam nada a dever aos mais problemáticos astros do rock mundial, não faltaram bebedeiras, acusação de satanismo, cinco separações, briga com gravadoras e empresários, morte de uma pessoa em seu apartamento, cancelamento de shows e até uma tentativa de linchamento por ser considerado impostor de si mesmo em uma apresentação. Mas aí, quase dez anos tinham se passado e o álcool já havia tirado do frágil magro barbudo muitas coisas. A mais palpável delas, o pâncreas. Quando cantava em Ouro de Tolo que tinha uma porção de coisas grandes para conquistar e que não podia ficar ali parado, Raul sabia o que dizia, ou pelo menos parecia saber. A intenção de ser conhecido vinha desde a infância, com o sonho de ser escritor, ator, cantor, de deixar a sua marca no mundo, como imaginou várias vezes em seus diários guardados com zelo num baú. O que Raul Seixas não sabia, ou pelo menos não parecia saber, é que estava iniciando também naquele 1973 uma mudança de rumo na literatura brasileira e mundial. Mudança que tomaria forma somente alguns anos depois, já perto de sua morte em 1989: acompanhava-o naquela passeata pelas ruas do Rio o parceiro que conhecera pouco tempo antes e com quem comporia muitos de seus maiores sucessos. "A minha grande escola para escrever foi a letra de música", não se cansa de repetir o hoje imortal Paulo Coelho sobre o sucesso de seus livros no mundo inteiro.

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