Orquestra brasileira explora sons de instrumentos feitos de resto de madeira queimada na Amazônia

Na Suíça, Lívio Tragtenberg e Marco Scarassatti se apresentam com mensagem sobre mudanças climáticas

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Por João Marcos Coelho
Atualização:

Estreia neste sábado, 2, na Suíça, uma orquestra brasileira diferente, a BIO – Burned Instruments Orchestra (Orquestra de Instrumentos Queimados), concebida por dois compositores brasileiros, Lívio Tragtenberg e Marco Scarassatti. Será no Theater Chur, nesta cidade suíça. É um dos eventos mais importantes entre os cerca de 200 programas multiartísticos integrantes do Festival Culturescapes 2021 Amazonia, espalhados pela Suíça, França e Alemanha. A ideia é “aumentar a consciência sobre a ameaça que as mudanças climáticas representam para a Amazônia, bem como sobre a importância das culturas indígenas e da responsabilidade social global”, conforme anunciam os organizadores.

Público pode tirar sons das árvores queimadas da Amazônia e dos Alpes Foto: Gilberto Macruz

“Nossa proposta é criar uma instalação envolvente, que aponte, por um lado, a atual política ambiental, que incentiva a queima de florestas e biomas brasileiros para abrir caminho à exploração de terras pelo agronegócio; e que, por outro lado, se conecte à cosmopercepção dos povos indígenas brasileiros em suas relações com árvores sagradas”, revelam Lívio e Marco em entrevista ao Estadão. A instalação permanece até o dia 9 no teatro, com a performance de 40 minutos sendo realizada diariamente. Depois, segue para o Museu Tinguely, na cidade de Basel, onde será inaugurada no dia 21. Detalhe: depois da performance de 40 minutos, o público poderá tocar, tirar sons dos instrumentos queimados, que também podem ser chamados de esculturas sonoras, feitos de árvores queimadas da Amazônia e dos Alpes. Há mais de um mês em Basel, Livio e Marco partiram da constatação de que a Floresta Amazônica é “uma mata-mãe, que se conecta a todas as outras matas, florestas e bosques ao redor do mundo”. Assim, conceberam uma instalação sonora explorando as sonoridades agônicas das queimadas e derrubadas das árvores brasileiras e, ao mesmo tempo, criaram, a partir da coleta de madeira caída nos bosques alpinos, objetos-árvores sonoros que são tocados musicalmente, compondo e devolvendo ao ambiente a sonoridade de uma floresta de árvores sagradas que se regeneram ao toque musical. “BIO reflete o atual momento de agonia e aponta para uma possível ressurreição da natureza em um processo de longo prazo, a partir de ações sensíveis, conscientes e coletivas”, afirmam. Com essa estratégia, transportaram a Amazônia brasileira para o vale alpino de Engadina. “Durante uma residência na Fundaziun Nairs em Scuol, as florestas montanhosas locais se tornaram uma fonte de instalação dos instrumentos que agora serão apresentados no Theatre Chur e no Museu Tinguely, em Basel”, conta Lívio. Realidade. Além dessa instalação, Marco, que também é professor do curso de licenciatura indígena na UFMG, por ele instituído em 2015 e pioneiro no País, convidou o mestre de cantos do povo indígena huni kuin Ibã Sales. Juntos, eles fazem uma reconfiguração sonora dos cantos tradicionais ligados à cerimônia da ayahuasca, de modo a criar um ambiente visual e sonoro de expansão sensível da realidade. 

Restos de árvores dos bosques da região adquirem vida como esculturas musicais Foto: Gilberto Macruz

Na primeira parte do programa de hoje, intitulado Noite Amazônica, será projetado o filme mudo No Paiz das Amazonas, de 1922, importante testemunho fílmico da ocupação da floresta equatorial, com trilha sonora composta a quatro mãos. “Este filme foi o primeiro a documentar a economia local dos povos indígenas na Amazônia, retratando as economias em desenvolvimento da pesca e das plantações de borracha no início do século 20”, lembra Marco. É uma trilha que “briga” com as imagens originalmente produzidas com objetivos comerciais. “É uma trilha-denúncia, usamos sonoridades remetendo à música indígena, que por si estabelece um antagonismo às imagens”, completa Lívio. O que se percebe são imagens otimistas acopladas a um universo sonoro devastado. Essa criação a quatro mãos de Lívio e Marco é um daqueles momentos virtuosos que confluem para a concepção e realização de obras essenciais para o nosso tempo. Quando surgiu o convite do Culturescapes, ambos já trabalhavam, separadamente, em projetos com muitas afinidades. “Estávamos desenvolvendo a ideia de uma orquestra de instrumentos quebrados, mas as queimadas de 2019 e 2020 impulsionaram a ideia de uma instalação para onde fazemos esculturas sonoras com árvores caídas e queimadas e que pudessem ser tocadas numa performance musical”, explica Marco Scarassatti. Paralelamente, Lívio realizou em abril passado o Festival de Música Indígena com representantes de Peruíbe, litoral sul paulista. 

Os compositores Marco Scarassatti e Livio Tragtenberg Foto: Gilberto Macruz

Surgiu assim a ideia da Noite dos Xamãs com Ibã Sales, mestre de cantos do povo huni kuin. “Tenho trabalhado com ele desde 2015, quando experimentei a ayahuasca pela primeira vez”, conta o compositor. “Para o festival, trabalhamos no processamento da voz do Ibã para criar o correspondente à ‘miração’ auditiva, relacionada ao efeito do chá, que permite aos huni kuin o contato com outros planos dimensionais e com a cura. Dessa forma, criamos um ambiente sonoro e visual para o Ibã atuar com seus cantos de miração e cura, enquanto sua voz é processada e alterada dando uma dimensão espacial ao transe. Ao mesmo tempo, projetamos um filme realizado por Luiz Pretti, com imagens das pinturas huni kuin, imagens da mata e do próprio Ibã”, acrescenta.  A ideia da Amazônia como mata-mãe conectada a todas as matas do planeta levou Marco e Lívio a utilizar áudios das queimadas na Amazônia, das derrubadas de árvores pelas correntes, “tudo difundido por alto-falantes que vêm do chão”, diz Marco. “Essas sonoridades compõem o ambiente da instalação, como se da Terra e das raízes se escutassem as queimadas das matas brasileiras, não só da Amazônia. Ao mesmo tempo, árvores caídas da floresta alpina foram coletadas e adquirem vida como esculturas musicais. Essas esculturas são tocadas, como forma de restituir pelo som a energia da floresta, reconectando à Amazônia e numa perspectiva de regeneração da floresta pelo som”, conclui Marco Scarassatti.

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