Ópera sobre a peste, de Cesar Cui, é encenada no isolamento social

Cantores, maestro e diretor cênico encenam, sem sair do isolamento, ‘Festim em Tempos de Peste’, do compositor russo; novo projeto já está sendo preparado

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Por João Luiz Sampaio
Atualização:

Um grupo de pessoas se reúne para um jantar enquanto, lá fora, a peste ataca a população. A história poderia ser um retrato do nosso tempo, mas a ópera Festim em Tempos de Peste foi na verdade finalizada pelo compositor russo Cesar Cui em 1900. O modo como ela foi encenada agora, no entanto, não poderia ser mais a cara de 2020: cantores gravando cada de um de sua casa, comandados a distância por maestro e diretor cênico. 

A ideia nasceu de uma conversa entre André Heller-Lopes e o maestro Ira Levin. Enquanto planejavam possíveis novos rumos para o Teatro Municipal do Rio de Janeiro, do qual são diretores, resolveram embarcar em um projeto próprio. “Eu perguntei ao Ira: topa tentar uma coisa maluca? E ele topou”, diz Heller, que conhecia a ópera de uma temporada que passou em São Petersburgo. “Era a chance de fazer uma coisa diferente dos vídeos que estávamos vendo o tempo todo na internet”, afirma Levin. Os dois procuraram um time de cantores brasileiros. E eles embarcaram na ideia. 

Edição. Solistas criaram seus próprios cenários e figurinos e gravaram áudio a partir de base feita ao piano pelo maestro Foto: Festival Online da Dellarte

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O primeiro passo foi traduzir para o português a partitura, tendo como base a tradução da peça de Aleksander Pushkin feita por Irineu Franco Perpetuo. Depois de um mês, o time de cinco cantores, formado por Vinicius Atique, Giovanni Tristacci, Luisa Francesconi, Gabriella Pace e Murilo Neves, recebeu a música e começou a se preparar. “Conversamos então sobre os andamentos e, a partir daí, gravei toda a partitura no piano, a base sobre a qual eles gravariam suas partes”, conta Levin.

Ao mesmo tempo, Heller orientou como seria a encenação. “Eu imaginei uma leitura na qual os personagens estariam no purgatório e pensei nos cantores sendo vistos por trás de vidros, da luz de vela. Fiz algumas fotos em casa e mandei para eles como sugestão.”

A partir daí, cada cantor precisou criar o cenário e o figurino em sua casa – e gravar sozinho, sem os colegas, sua parte. “Minha mãe e meu marido me ajudaram a criar esse ambiente e também com a filmagem”, conta Francesconi. “No começo, a maior dificuldade foi atuar olhando para o lugar certo, porque os outros personagens não estavam ali. O que ajudou foi ter objetos onde eles estariam. Ainda assim, você canta e reage cenicamente sem ver o que os outros estão fazendo. A saída é reagir ao piano, lembrando o que o outro cantor estaria falando naquele momento.”

Para Tristacci, a dificuldade foi semelhante. “No final das contas, você tem que se aproximar um pouco da linguagem do cinema, preocupando-se com a edição final e não com o trabalho do teatro de prosa, ao qual estamos acostumados. E é algo totalmente novo atuar sem ter noção do resultado final, do todo.”

O barítono Vinicius Atique não apenas cantou na ópera como ficou responsável pela edição do material. Mas ele garante que o principal desafio foi para o cantor e não para o editor. “É estranho, em uma ópera, não poder fazer música junto, ter que ensaiar sozinho com a base musical preparada pelo maestro.” Para facilitar o processo de edição, foram necessárias algumas escolhas. “A primeira delas era decidir se os cantores gravariam o vídeo junto com o áudio ou se gravaríamos primeiro a parte musical e depois o vídeo, atuando em cima da trilha gravada. Eu havia pensado em fazer tudo junto, mas vi que seria muito complicado. Então preferimos gravar o áudio primeiro.”

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O que não foi exatamente fácil. “Você está gravando e passa uma moto na rua, então perde tudo. Começa de novo e as maritacas começam a cantar... Eu levei oito horas para registrar a minha parte”, diz Atique, que trabalhou com Heller durante a edição para criar efeitos visuais para a encenação. 

O que começou como uma ação entre amigos, ganhou vulto. O vídeo, de pouco mais de meia hora, estreia neste sábado, 8, às 18h50, no Festival Online da Dellarte (clique para acessar o canal no Youtube), e fica disponível para o público do evento durante o mês de agosto. “Em seguida, vamos compartilhar abertamente na internet”, diz Heller. “Foi um trabalho sem orçamento, com erros e acertos. Mas posso dizer que foi divertido fazer.”

Novo projeto já está sendo preparado

Cesar Cui fez parte do que se convencionou chamar, na segunda metade do século 19, de Grupo dos Cinco. Formado ainda por Mily Balakirev, Aleksandr Borodin, Modest Mussorgsky e Nikolai Rimsky-Korsakov, o grupo propunha uma música que nascesse de temas russos.

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“Cui acabou sendo deixado um pouco de lado, talvez pelas críticas duras que fez a Tchaikovski, mas sua música tem uma percepção muito interessante do drama, com momentos profundamente russos”, diz Ira Levin.

Para Heller-Lopes, sua adaptação do texto de Pushkin é um achado. “Das quatro pequenas tragédias de Pushkin, esta talvez seja a mais misteriosa, a de mais difícil compreensão. Acho que foi necessário vivermos esse momento de pandemia para entender a profundidade da obra.”

Depois de Festim em Tempos de Peste, o diretor e o maestro já resolveram trabalhar em um projeto semelhante com uma nova ópera, O Imperador de Atlantis, escrita pelo libretista Peter Kien e o compositor Viktor Ulmman durante o período em que viveram presos no campo de concentração de Theresienstadt, em 1943. Na ópera, ao saber da decisão do imperador de promover batalhas até que não haja mais sobreviventes, a Morte revolta-se com o modo como é tratada a mortalidade do ser humano e recusa-se a matar as pessoas. “Não se deve usar o nome da morte em vão”, ela afirma.

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