Ópera ‘Adriana Lecouvreur’ discute a solidão de uma diva trágica

Obra de Francesco Cilea pertence a um período, iniciado nos anos 1860, em que a ópera italiana começa a se questionar sobre seu futurono

PUBLICIDADE

Foto do author João Luiz Sampaio
Por João Luiz Sampaio
Atualização:

Em vida, a atriz Adrienne Lecouvreur foi celebrada como uma das maiores intérpretes de seu tempo; após a morte, em 1730, suas cinzas foram jogadas nas margens do Rio Sena, uma vez que a Igreja se recusou a lhe conceder um funeral católico. “Ver homens cruéis um túmulo a ela recusarem,/ a ela a quem a Grécia adorou como musa;/ As margens do Sena não devem mais ser consideradas profanas,/ As cinzas sagradas de Lecouvreur lá permanecem”, escreveu então Voltaire – e suas palavras seriam apenas as primeiras de uma série de homenagens e revisitas à figura da atriz, que viraria peça de teatro na França do século 19; viajaria para a Itália em 1902, transformando-se em ópera de Francesco Cilea; e pousaria na São Paulo de 2016, onde a obra do italiano ganha nova produção a partir desta quarta-feira, dia 6, no Theatro São Pedro.

Adriana Lecouvreur não sobe aos palcos brasileiros desde os anos 1960. “Há um repertório do fim do século 19, começo do século 20, na ópera italiana que desapareceu dos palcos”, diz o maestro Luiz Fernando Malheiro, que assina a direção musical e a regência do espetáculo. “Não sei explicar muito bem o motivo. Acho que é a preguiça dos teatros, que acabam se voltando sempre aos mesmos títulos. Pois qualidade e interesse não faltam. Prova disso é a reação da própria companhia. Fiquei surpreso positivamente ao ver como a orquestra, formada por músicos jovens, assim como os cantores mais novos do elenco gostaram da música e se envolveram com a proposta da ópera desde que anunciamos a montagem”, explica.

  Foto: Helov?sa Bortz | DIV

PUBLICIDADE

A ópera de Francesco Cilea pertence a um período, iniciado nos anos 1860, em que a ópera italiana começa a se questionar sobre seu futuro. Como Cilea, autores como Arrigo Boito, Amilcare Ponchielli ou Umberto Giordano manifestavam, cada um à sua maneira, o desejo de questionar a tradição e apostar na renovação. Curiosamente, participou desse processo um brasileiro, Carlos Gomes, a quem a nova geração recorria em busca de ideias originais. “Eu gosto muito desse período de transição, que está muito ligado ao Carlos Gomes. Quando se ouve a partitura de Adriana, você descobre a todo momento a influência do brasileiro. Por tudo isso, é preciso voltar a esse repertório, ainda mais em um teatro escola como o nosso, em que o jovem músico precisa ter contato com a diversidade da ópera”, afirma ainda Malheiro.

Adriana se baseia em um episódio real – ainda que o desfecho ganhe contornos ficcionais. Apaixonada pelo conde Maurizio (o tenor Eric Herrero), a atriz (a soprano Daniela Carvalho) desperta a ira e o ciúme da Princesa de Bouilon (a meio-soprano Denise de Freitas), que, eventualmente, provoca a sua morte ao enviar a ela um ramo de flores envenenadas. “Meu ponto de partida, ao trabalhar na montagem, foi entender quem é Adriana. Ela foi uma artista do século 18, sim. Mas, por trás de todo o babado e das referências de época, o que resta? Adriana é uma mulher que se entrega a uma fantasia, apaixona-se por um cafajeste, e morre na solidão. Eu me peguei imaginando aquele momento em que, depois do coquetel que se segue a uma estreia, um ator ou atriz volta ao camarim para pegar sua mochila e cruza o palco vazio. Esse profundo sentimento de solidão foi o que me guiou na hora de pensar na produção”, explica o diretor André Heller-Lopes, que assina a concepção cênica do espetáculo.

Ao se voltar para a essência da personagem, Heller-Lopes abriu mão da necessidade de uma montagem de época, que se voltasse ao século 18. “Já há tantas versões assim disponíveis. Além disso, há muitas Adrianas, a atriz, a que deu origem à peça, a que se transformou em ópera. Por tudo isso, não se justificava uma produção que estabeleça a ida à ópera como se fosse a ida a um funeral. Não me preocupei em estabelecer a trama em uma outra época específica. Mas seria absurdo não aproximar esse título da nossa realidade. Afinal, se o que interessa nessa história é a condição da diva, de uma mulher adorada por todos e, ainda assim, profundamente frágil, a relação com o nosso tempo é evidente. A Adriana real foi uma mulher à frente do seu tempo.”

Além de Eric Herrero, Daniela Carvalho e Denise de Freitas, participam da montagem os baixos Gustavo Lassen e Gustavo Müller, os tenores Daniel Umbelino, Mar Oliveira e Edilson Junior, o barítono Johnny França, a soprano Maria Sole Gallevi e a meio-soprano Cecília Massa. Renato Theobaldo, Fábio Namatame e Fabio Retti assinam a cenografia, o figurino e a luz. O espetáculo, em maio, segue para Manaus, onde integra a programação do Festival Amazonas de Ópera, ao lado de uma nova produção, também dirigida por Heller-Lopes, da Médée, de Cherubini (com direção musical e regência do maestro Marcelo de Jesus).