Obra é exemplo de respeito à tradição

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Por Agencia Estado
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Quando Maria Bethânia gravou A Beira e o Mar, um imenso sucesso, composto por Roberto Mendes e Jorge Portugal (foi mesmo título de um disco dela), tratou a música da forma delicada que lhe é característica e que a letra, de certa forma, propõe: "Faço esse mundo girar/ Mas estarei sempre inteiro/ Se você despedaçar/ Você será sempre a beira/ E eu toda a água do mar." Em Tradução, o novo disco de Roberto Mendes, os violões e a zabumba tratam A Beira e o Mar como chula - e o mesmo acontece com outras composições conhecidas, como Caribe, Calibre, Amor ou Dividiu (letra de Chico Porto). Roberto Mendes está recontando sua história - não voltando no tempo, mas expondo a ossatura, o principal elemento de sustentação de sua obra. Louvável e belíssimo, Tradução é um projeto que ecoa a preocupação - mais acentuada nos últimos tempos - baiana de preservar suas tradições. São dois CDs. No primeiro deles, Roberto Mendes canta (com participações especiais dos conterrâneos Caetano Veloso, Margareth Menezes, Grupo Barra Vento e ainda do contrabaixista Nico Assumpção) as músicas que fez (algumas especialmente para o disco) a partir da tradição das chulas do Recôncavo. No segundo disco, os chuleiros da comunidade de São Brás cantam as músicas inspiradoras. Para mostrar quanto sua música deve à tradição, Roberto Mendes abre o disco de "traduções" com um pot-pourri de chulas do domínio público - cantos religiosos e de festas, religiosas ou não: "É de Deus/ É de Deus/ É de Deus essa casa/ É de Deus" reza o canto que abre o CD. Outros do pot-pourri falam de rodas de dança, namoros, bois, de morenas belas, da festa com que a polícia acabou, de sereias e do galo que canta anunciando a chegada da hora do recolhimento, trazendo versos maliciosos, de duplo sentido. Enfim, o gênero se presta a qualquer tema, como seus parentes afro-brasileiros de outras regiões e influências, o lundu, o samba, o choro, a catira, o maracatu, etc. Assim, o segundo disco - o que tem os chuleiros originais, da comunidade de São Brás - começa com uma espécie de explicação, dada pelo mestre: "É isso aí, minha gente. Vai falar Valentim da Burrinha; iniciei chegando numa burrinha de Itapema, com um professor chamado Orlando; daí eu tava com uma base de 16, 17 anos, comecei com um violão de um rapaz chamado Zé (...) Agora não tem viola; hoje em dia nós estamos ensaiando com um violão, somente." E começa a festa, tindo-lê-lê, lá-lá, vamos ver a burrinha... "Cadê o sol, pelo mar raiando? Vem vem a burrinha, ela ê-vem sambando." Os cantos podem ser sagrados: "Salvê o senhor Santo Amaro que é o nosso padroeiro, vamos louvar nesse grande dia, adorar Jesus com essa Avê-Maria." Ou podem ser sambas da burrinha - aquele de que ela gosta quando sai da roda: "Ô, minha burrinha, ela é boa de sela." O disco tem 14 faixas, vários temas por faixa. Tem a chegança - Eu cheguei, Santo Amaro -, a despedida - Eu já vou, Santo Amaro -, o samba ´marrado, que é o samba violado, marcado por palmas, parente mais próximo do samba de roda, também tipicamente baiano. Roberto Mendes, um grande compositor, prestou um grande trabalho à cultura, com esse Tradução. Que sirva, como ele quer, de exemplo para outros.

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