O vigor artístico de Menahem Pressler

Aos 90 anos, pianista exibe grande vitalidade ao enfrentar novos desafios

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Por João Marcos Coelho
Atualização:

Ele completou 90 anos em 19 de dezembro. Há poucos anos, encerrou o lendário Beaux Arts Trio, depois de 55 anos de atividades, um grupo camerístico de sonhos do qual o violoncelista brasileiro Antonio Meneses teve a honra de participar nos anos finais. Além das gravações com o trio, Antonio teve também o privilégio de registrar em CD a integral das sonatas de cello de Beethoven com Menahem Pressler. Mas, em vez de se aposentar cheio de glórias, ele parte para novas empreitadas. Parece imortal, tamanha a vitalidade e o modo como só agora passa a dar atenção maior ao piano solo. Em 2013, dois CDs neste formato nos obrigam, deliciosamente, a prestar atenção em suas soberbas qualidades como recitalista. No primeiro, pelo selo sueco BIS, ele enfrenta dois Himalaias da literatura pianística: a Sonata Opus 110 de Beethoven e a Grande Sonata em Lá Bemol Maior D. 960 de Schubert. Estes dois colossos emolduram o Noturno nº 20 de Chopin. O segundo, porém, é ainda mais formidável, porque representa melhor o estado de espírito de um músico notável que assesta mente e dedos só para obras musicais muito queridas e amadas, que, de certo modo, espelham sonoramente esta quadra de sua longa vida. Gravado para o pequeno selo francês La Dolce Volta, o CD é um primor de delicadeza e fino trato como objeto físico. Um exemplo: as muitas fotos do folheto interno são o resultado de meses de convivência do pianista com o fotógrafo Julien Migot. Não são fotos circunstanciais, mas agudos registros de Pressler. Assim como, aliás, as performances deste disco memorável, refinadamente costuradas em torno de Viena, cidade-farol do pianista. Tales from Vienna foi gravado em maio de 2013 no Steinway do próprio Pressler em Bloomington, Indiana, onde ele leciona há décadas. Embora se inicie com a grande Sonata D. 894, de Schubert, com mais de 44 minutos de duração, na verdade o fulcro central do CD é o pequeno Rondó em lá menor K. 511 de Mozart. Uma gema premonitória de 1787, que já aponta e prefigura o romantismo que se afirmaria pouco depois. "Não há nada mais belo, a meu ver, do que este Rondó", diz Pressler. "Ele usa um cromatismo muito avançado que anuncia a escrita de Chopin (...) Como explicá-lo? É uma música que contém ao mesmo tempo alegria e tristeza (...) Imagino o compositor relembrando os momentos felizes de seu passado (...) e despedindo-se de seu público." De fato, a peça não é tecnicamente difícil. O problema é, como diz com rara felicidade outro pesquisador, fazer cantar as vozes interiores que Mozart faz aflorar na música de modo a nos ensinar a escutar as nossas próprias. Pressler conta que Horswowski, parceiro de júri de um concurso de piano, apostou com ele que fracassariam todos os candidatos que, tendo um cardápio de escolha entre o Impromptu Opus 90 de Schubert e este rondó, optassem por Mozart. "Ele acertou em cheio", diz Pressler, que faz uma leitura prodigiosa da peça, com tudo que ela tem de ambíguo e profético. Não há nada luminoso neste rondó, no máximo sorrisos quando ele modula da tonalidade menor para a maior. Como, aliás, adorava fazer Schubert. E isso, claro, acontece na SonataD. 894, que abre o CD. Pressler resume o desafio de modo brilhante: "É uma obra magnífica, mas muito delicada de se interpretar. Não há efeito dramático nesta música. O imenso Molto moderato e cantábile inicial é uma fantasia (...), uma peça pianística, mas na qual Schubert teria 'esquecido' o piano. De fato, ele ultrapassa os limites sonoros do instrumento. O Menuetto é uma espécie de valsa impossível de se dançar. E o final é uma dança cuja dimensão vienense não pode esvair-se numa interpretação ligeira". Em suma, é uma valsa, mas com vínculos claros com a música vocal, o lied. Em Schubert, Pressler realiza o que costumeiramente pede a seus alunos. Por exemplo, no Molto cantabile inicial, a inconstância harmônica apoia-se num sentido seguro e interior do ritmo, como ele recomenda aos alunos: "Você tem de possuir um corpo rítmico para poder ter uma alma". O rondó e a D. 894 são peças da maturidade de seus compositores, mas as seis Bagatelas opus 126 são de fato as derradeiras peças para piano de Beethoven. Ao contrário de duas coletâneas anteriores, estas constituem de fato um ciclo orgânico que alcança os 20 minutos. Pequenas gemas, ou cápsulas, ou, ainda melhor, diário íntimo. Mas concentradíssimas em significado.

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