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O rap contestador de McKappa chega ao País

Uma das raras vozes do rap angolano a criticar a desigualdade, tenta um intercâmbio cultural com o Brasil e divulga novo CD Nutrição Espiritual

Por Agencia Estado
Atualização:

De passagem pelo Brasil pela segunda vez, o rapper MCKappa, de 25 anos, é hoje uma voz contestadora quase solitária em sua Angola. O rap, em cuja essência prega a intervenção social e a crítica às desigualdades, não encontra naquele país muitos porta-vozes dos efeitos colaterais de uma democracia ditatorial, em que a liberdade de expressão é controlada pelo governo. Kappa é um dos poucos dessa linhagem. Por denunciar as agruras da realidade de sua terra nas letras que escreve, o rapper já foi alvo de ameaças. Para ele, um furo n?água: em vez de amedrontá-lo, a retaliação lhe deu forças para continuar no ofício de contestador e permanecer em Luanda, capital angolana. "Não há muitos rappers em Angola na mesma situação, porque o movimento de rap revolucionário é reduzido. Grande parte do rap é comercial, fala mais de mulheres, de festa." Só que o clima lá não é propriamente de festa, alegria. Sem eleições há anos - e sem previsão para elas ocorrerem -, o país africano vive sob o controle do presidente José Eduardo dos Santos, para Kappa, um governo ilegítimo que não deixa saber como é de fato a vida por lá. Apesar das decepções, é possível identificar no rapper um fio de esperança. Ou, pelo menos, uma motivação para isso. Kappa - ou Katrogipolongopongo, (paz de espírito) - esteve o ano passado no Brasil, patrocinado pela ONG Open Society. Trocou informações com rappers brasileiros, conheceu o projeto do AfroReggae, apresentou-se no Circo Voador, no Rio, e encontrou-se com o ministro Gilberto Gil. Voltou para Angola cheio de idéias para a criação de um projeto social em Margoso, bairro de periferia onde mora há 20 anos. Em busca de mais informações, retornou ao Brasil no último domingo. Já visitou a ONG Spetáculu, de Gringo Cardia, teve um rápido encontro com MV Bill, enquanto conhecia a Cufa, mantida pelo rapper brasileiro na Cidade de Deus, e aproveita para divulgar seu segundo CD, "Nutrição Espiritual". Letras de protesto Nascido em Luanda, filho de pai motorista e mãe doméstica, o angolano MCKappa, ou MCK, não revela o nome verdadeiro para preservar sua segurança e identidade. Tem motivos de sobra para isso. Não só as ameaças anônimas que recebe - hoje, menos - o fazem querer se proteger. Um incidente ligado a ele e sua música lhe caiu como uma bomba. E o abalou. Cherokee, um jovem lavador de carro, estava cantando Técnicas, Causas e Conseqüências, rap de autoria de Kappa, que relata a dura vida do angolano nas mãos do atual governo. A guarda do presidente passava pelo local e não gostou do que ouviu. O jovem foi surrado e morto. O episódio causou comoção no país, mas, até hoje, o caso não foi solucionado. Segundo o rapper, que cursa faculdade de Filosofia, as testemunhas foram ameaçadas. "Algumas das pessoas que viram o crime disseram que a guarda achava que Cherokee era eu", conta. "Dei assistência à família dele e continuo em contato com ela." Técnicas, Causas e Conseqüências está no repertório do primeiro CD, Trincheiras das Idéias, produzido e gravado pelo próprio Kappa, em sua casa, e lançado de maneira independente. Por causa do teor de suas letras e da democracia ditatorial imperando, ninguém quis bancar seu CD de estréia. "Produzi com pouco dinheiro, mas com liberdade artística." Não tocou nas rádios, mas circulou bem em um "circuito fechado". E causou impacto, principalmente depois da morte de Cherokee. "Vendi cerca de 5 mil discos. A cópia era feita de acordo com a procura " Para seu segundo trabalho, Nutrição Espiritual, o MC conta com uma estrutura um pouco melhor. Tem o respaldo de uma editora e vai investir, primeiro, numa turnê em países de língua portuguesa, como Moçambique, Portugal e Brasil. Por aqui, ele faz show de lançamento no domingo, às 20h30, durante o Festival Internacional da Música Independente de Brasília. Projetos sociais Ele também fará uma participação especial no show dos Racionais MC?s, no dia 6, em Osasco. Mas além de divulgar sua música entre os brasileiros, Kappa veio imbuído da missão de visitar algumas ONGs, como a de Gringo Cardia, MV Bill e do AfroReggae, conversar com estudantes e trocar informação com quem desenvolve projetos sociais bem-sucedidos dentro de comunidades carentes. "Em Angola, não há esse espírito de vida em comunidade, com artistas à frente dos projetos", comenta. "Vim de novo para ter mais experiência, para eu conseguir fazer um projeto mais desenvolvido e com parcerias." Com MV Bill, o angolano teve um breve contato esta semana, enquanto visitava a Central Única das Favelas (Cufa), na Cidade de Deus. Mas combinou com o rapper brasileiro um novo encontro, quando retornar ao Rio, no início de maio. Aproveitou para deixar na ONG (que tem Bill como um dos fundadores) seu videoclipe e o documentário Angola - Saudades de Quem te Ama, do qual participa. Diz conhecer dois discos de MV Bill e já ter visto, muito rapidamente, alguma coisa do documentário Falcão - Meninos do Tráfico. Rap brasileiro O que chama atenção de Kappa no Brasil é a existência de bairros de periferia que mantêm uma educação auto-sustentada dentro das comunidades. "Esses projetos ajudam a intervir no quadro de violência, de uso de drogas." Por isso, quer levar o modelo para sua comunidade, no bairro periférico de Margoso, e desenvolver um projeto que alie educação e música. Morador de Margoso há 20 anos, o rapper passou seus cinco primeiros anos num bairro de classe média. Mas a realidade com o qual conviveu a maior parte da vida é mesmo a da falta de saneamento, água, luz, qualidade de ensino. Começou a gostar de música graças aos dois irmãos mais velhos e sua coleção de discos. Ouvia música africana, sobretudo angolana e de boa qualidade: Bonga, Paulo Flores, Felipe Mukenga O rap chegou em Angola na voz dos americanos. Àquela altura, era a única referência do gênero que tinham. Em meados da década de 90, passaram a ter acesso também ao rap brasileiro, feito por Gabriel O Pensador, Racionais e outros. "Passamos a estruturar melhor nossas idéias e a cantar rap em português." No rap, sua iniciação foi pela dança, embalado pelo filme Break Dance, para só depois partir para a música. Começou a cantar por volta de 1993 e a tomada de consciência da realidade na qual estava inserido o levou a letras altamente críticas. Em seu país, tanta querência de liberdade culmina em certa pressão. "As ameaças existem, mas o senso de compromisso faz com que minha coragem seja maior que o medo."

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