O punk e o maestro comentam a música um do outro

'C2+Música' promove encontro entre Ariel, dos Invasores de Cérebro e Rodrigo, maestro da Sinfônica Municipal

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Rodrigo, na guitarra, é regente da Orquestra Sinfônica Municipal e Ariel, com a batuta, é o roqueiro líder da banda Invasores de Cérebro. Foto: Paulo Liebert/AE

 

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SÃO PAULO -  O punk foi ao concerto e o maestro ao show de rock. E o que aconteceu por lá? É melhor eles mesmos contarem.

Por Rodrigo de Carvalho (maestro)

Sem saber o que encontraria, fui a um show de punk rock no Hangar 110, tradicional reduto do gênero, no Bom Retiro. A chuva que caía, e que espantou grande parte do público, foi o que de mais incômodo aconteceu na noite. Lá dentro, me senti à vontade, recebido cordialmente como nos melhores teatros em que atuei. Livre da cortina de fumaça de cigarros, com ar-condicionado ligado e uma pequena loja onde se vendia CDs, camisetas e fanzines, via-se que o lugar é muito bem cuidado pelo staff que me levou aos camarins, onde cinco bandas dividiam o espaço.

O show que começou às 19 h iria acabar pouco antes das 24 h. Das bandas que ouvi, tinha uma vinda do Japão em tour pelo circuito underground brasileiro, uma outra chamada DER que, como o nome bem expressa, tocava um som parecido com britadeiras no asfalto, e a principal atração da noite, os Invasores de Cérebro, liderada pelo Ariel, um dinossauro do movimento punk no Brasil que já tinha feito parte das extintas bandas Restos de Nada e Inocentes. Cada grupo tocou uma música do Olho Seco, clássico do punk brasileiro de quem até então eu nunca havia ouvido falar, ao contrário do público que, a cada início de música, redobrava a intensidade dos pulos e gritos.

Às vezes a excitação era tão grande que um ou outro da plateia subia ao palco para dançar e cantar ao lado do vocalista, que continuava atuando como se não tivesse percebido a presença de um ‘novo integrante’ no palco. Se alguém como eu não conhecia a letra previamente, não foi naquela noite que passou a conhecer. Apesar de perceber a intenção de protesto e crítica, o volume dos instrumentos encobria totalmente o vocalista, impossibilitando de se ouvir o que era dito-cantado. Do pouco que pude entender, os textos me pareceram bastante simplistas no modo de analisar as idiossincrasias da vida na cidade grande, apesar das caras e modos sérios com que eram entoados. No palco, além do vocalista, a banda se apresentou com um baixo, uma guitarra e uma bateria. Tecnicamente falando, o guitarrista se destacava com seus improvisos. Pela natureza melódica de seus solos, desconfio que ele não aprendeu música ouvindo aquele tipo de som. O baterista mantinha o show nervoso com uma pegada rápida e convicta, mas confesso que o baterista-britadeira da banda anterior me impressionou mais. O baixista, bem, mostrou que sabe fazer a quantidade mínima de notas para tocar neste estilo. O foco central era mesmo o vocalista e sua forte atitude performática no palco. Ora dançando, ora ajoelhado, ora se banhando com a cerveja que trouxe ao palco ou encarando seus ouvintes e dividindo seu microfone com eles, Ariel me fez pensar no quanto a experiência e anos vividos no palco trazem naturalidade ao artista. Já com a adrenalina normalizada após o show, conversávamos calmamente sobre suas impressões daquela noite e percebi o quão parecido é o que se passa no camarim e na mente de um artista após uma apresentação, seja ela de punk rock ou sinfônica.

Por Ariel (punk)

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Poucas vezes tive a oportunidade de ver de perto uma orquestra, de vez em quando vejo na TV alguma coisa e procuro entender um pouco da dinâmica do regente na condução de seus músicos, mas confesso que me perco em sua maestria, com o perdão do trocadilho. Quando me convidaram para assistir às obras de Villa-Lobos com a Orquestra Sinfônica Municipal e conversar com o maestro, fiquei com receio de ser recebido com a arrogância dos eruditos e, na minha aparência punk, ser hostilizado pela audiência, cheia de pompa e circunstância. Já no saguão notei que a plateia era composta por pessoas de todos os tipos e estilos. Havia senhores e senhoras em trajes de gala, naturalmente, mas também muitas pessoas em roupas ‘normais’ para uma noite paulistana. Não me senti um ET e, mesmo com um visual agressivo, nada saiu do normal. Eles sobreviveram. Acho que, depois de mais de 30 anos de movimento punk, não causamos mais estranheza.

Uma orquestra com mais de 100 músicos, todos arranjados em blocos, difere muito de um grupo de punk, onde na maioria das vezes só se apresentam quatro músicos, com bateria, baixo, guitarra e vocal. Fiquei surpreso como os sons fluem de instrumentos tão diferentes, mas que juntos se harmonizam. Eles criam uma atmosfera mágica, vinda suave pelos instrumentos de sopro, de harpas ou selvagens, com tambores trovoando e violinos rasgando o ar. Apareceu até um violino com uma corneta, que mais tarde fiquei sabendo que se tratava de um violinofone.

O maestro passa a criar um vínculo com os músicos. Pela agitação do regente, sabemos que está tudo de acordo com o previsto. Percebi até uma sambadinha dele em uma levada brasileira.

Dentro da composição punk também procuramos dar uma cara própria às nossas criações, fazendo uma música rápida e direta, muitas vezes com o mínimo de acordes possível, com textos ao mesmo tempo cheios de rancor e rebeldia. São visões realmente muito diferentes sobre música. Fazer isso para diversos instrumentos e harmonizar tudo em uma orquestra é um trabalho que merece respeito pela dedicação de cada integrante ao seu instrumento e ao conjunto da orquestra. Por sua vez, cada acorde de uma guitarra punk também merece respeito pela vontade que os músicos têm de fazer o melhor.

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O público do Auditório Ibirapuera parecia já acostumado àquele ambiente da música clássica, acompanhando com interesse. Nunca havia presenciado uma acústica tão perfeita, até os mínimos sons eram ouvidos. Uns tubos, que eram tocados sutilmente, saíam perfeitamente audíveis. Geralmente as casas de shows de punk rock não oferecem tamanha qualidade sonora. Aliás, não oferecem nenhuma.

A música consegue mesmo quebrar barreiras quando vemos bem de perto atuações tão cheias de energia criadora e tão empolgantes, como a apresentação dessa orquestra, comandada por um jovem maestro que conseguiu emocionar até mesmo um velho e rabugento punk.

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