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O melhor e o pior de Miles Davis é relevado em autobiografia impetuosa

Em 'Miles Davis, A Autobiografia', o gênio do jazz, morto em 1991, fala das brigas com Charlie Parker e Wynton Marsalis, confessa que batia em mulheres, revela o inferno nas drogas e, sobretudo, coloca o essencial que todo músico deveria ter

Foto do author Julio Maria
Por Julio Maria
Atualização:

Nenhum biógrafo poderia fazer algo melhor do que o próprio Miles Davis fez por sua história ao relatá-la ao poeta, jornalista e professor Quincy Troupe a partir de 1985. Claro, olhares de fora são sempre mais impetuosos com os deslizes alheios e biógrafos certamente se deteriam com mais afinco sobre o furacão Betty Davis traindo Miles com Jimi Hendrix (uau!), e com muito mais empenho a respeito da gravação de Kind Of Blue, o álbum de jazz relatado como o mais vendido da história que o trompetista minimiza. Mas isso é pouco de deficiência perto do muito de choque, êxtase, tensão, vala, psicoterapia, fúria, violência, riso, ódio, traumas, racismo e aulas de jazz reveladas não por didatismo, mas vivência. Miles Davis só não está por inteiro porque, ao se revelar com tanta impetuosidade, fica claro que não caberia em 543 páginas. Nem em 1 milhão. 

Imagem da exposição Queremos Miles! Foto: WEWANT MILES!

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Quincy Troupe tem hoje 82 anos e o fato de ser negro pesou no instante em que Miles decidiu abrir o quarto de sua alma a alguém. “Miles e eu somos da mesma região. Crescemos comendo o mesmo tipo de comida, amamos música, arte, roupas estilosas, basquete, futebol americano e boxe. Falamos a mesma língua e temos visões de mundo parecidas”, escreveu o autor no posfácio, sem esconder o efeito reflexo na sedução de um biografado que só odiava uma espécie mais do que os críticos de música em geral: os críticos de música brancos. As falas de Miles chegam orais, sem ajustes de edição nem buscas literárias. Nada. Na edição de Miles Davis, a Autobiografia, que a editora Belas letras lança agora no Brasil, é Miles falando o tempo todo, com todos os palavrões que isso implica. “Se tivéssemos higienizado a linguagem do livro, a voz de Miles não soaria tão autêntica”, escreveu Troupe.

Filho do dentista Miles Dewey Davis II, nascido a 26 de maio de 1926 em uma cidade à beira do Rio Mississippi chamada Alton, Miles III veio de uma família abastada e dona de terras. Seu pai pagou os estudos e apoiou sua escolha pela música, mas o fato de Miles não ter tido pai nem avô trabalhando no plantio do algodão no Sul não impediu que sua vida fosse marcada por um sentimento de ódio ao ódio que os brancos sentiam dos negros. Um tiro que ricocheteava e atingia o primeiro branco à sua frente. “Detesto como os brancos sempre tentam levar crédito por algo que depois ‘eles’ descobrem... Depois que o bebop se tornou febre, os críticos de música brancos tentaram agir como se o tivessem descoberto – e a nós – na 52º Street”, diz, sobre a linguagem do jazz que surge nos anos 40 com Dizzy Gillespie e Charlie Parker. Sobre o que o levou a abandonar os estudos de música na Juilliard School, em Nova York, denunciou: “Eles (a Juilliard School) eram voltados para a branquitude e racistas pra c... Porra, eu podia aprender mais numa única jam session no Minton’s Club do que em dois anos de Juilliard.”

Mas Miles criticava também seus pares negros pelo comodismo de suas formações feitas à base de muito feeling e poucos estudos. Apenas o pianista Bud Powell, ele diz, sabia ler partitura e tocar todo tipo de música. Os outros, gente como o próprio Charlie 'Bird' Parker, Lester Young, Thelonious Monk, Max Roach e muitos outros não sabiam nada de teoria musical. Miles ficava doido: “Conhecimento é liberdade e ignorância é escravidão. E eu não conseguia crer como alguém capaz de estar tão perto assim da liberdade não consegue se valer disso.” E mais: “É como se houvesse uma mentalidade de gueto que dissesse que eles não devem fazer certas coisas porque essas coisas são reservadas aos brancos.”

Numa das últimas aulas à qual ainda teve a paciência para assistir na Juilliard, sobre História da Música, Miles viu uma professora branca dizendo que "os pretos tocavam blues porque eram pobres e tinham de colher algodão". Assim, ficavam tristes e só restava a eles tocarem seus lamentos (impressionante como essa história é ensinada até hoje em todo o mundo). Miles levantou a mão e disse tudo de uma só vez: “Eu sou de East St. Louis, meu pai é rico e eu toco blues. Meu pai nunca colheu algodão algum e eu não acordei um dia de manhã triste e comecei a tocar blues. É mais profundo do que isso.” Ele então descreve a professora com algo impossível de ser reproduzido em um jornal e conclui: “Era esse tipo de merda que acontecia na Juilliard. Depois de um tempo, cansei disso."

Miles se contorcia ao ver o sorriso grande que Dizzy Gillespie e Louis Armstrong davam às plateias. Aquilo, para ele, era circo, falta de respeito com o povo negro, subserviência, deslumbramento, estupidez. “Por mais que eu adore Dizzy e adorasse Satchmo, sempre detestei a forma como eles riam para o público. Sei por que eles faziam isso – para ganhar dinheiro e porque eram artistas além de trompetistas. E tinham famílias para alimentar...” E adivinhe de quem é a culpa?: “Eu não ia fazer isso só para que um filho da p... branco, racista e que não sabia tocar pudesse escrever coisas simpáticas a meu respeito”. Claro, os críticos. Esses nunca foram perdoados: “O cara que escreveu aquela merda na Donwbeat provavelmente nunca tocou um instrumento”, ele fala, sobre uma crítica publicada em 1945 a respeito do álbum Charlie Parker’s Reboppers. Miles, 19 anos, havia sido convidado pelo supremo Charlie Parker para se juntar aos gigantes. Um crítico então escreveu que Miles só havia copiado, e errado, as coisas que eram antes tocadas por Dizzy Gillespie. “Talvez tenha sido aí que começou o meu ressentimento pelos críticos de música, quando eles me rebaixaram feio, na lata, numa época em que eu ainda era muito jovem e tinha muito a aprender”.

Mas o que Miles diz sobre música é um deleite. Atenção trompetistas que adoram vibratos: Uma lição inesquecível se deu no dia em que o professor de Miles, Mr. Buchanan, pediu para que a banda parasse enquanto ele fazia um solo: “Pare de tremer tantas notas, garoto. Você vai tremer bastante quando ficar velho. Apenas toque seco e desenvolva seu estilo. Você tem talento para ser um trompetista único”. Atenção pianistas que fazem base para trompetistas interferindo durante o solo deles. Miles critica aqui ninguém menos do que Thelonious Monk para ensinar algo: “Um trompetista precisa de cozinha para soar bem. É preciso ter uma pulsação forte e, na maior parte do tempo, não era a de Monk. Então, só falei para ele não tocar junto comigo...” Aos músicos que adoram impressionar as pessoas com agilidade e cascatas de notas, eis a dica de Miles Davis: “Eu nunca gostei de tocar um monte de escalas e merdas assim. Sempre tentei tocar as notas mais importantes do acorde, desmembrá-lo. Eu ouvia todos aqueles músicos tocarem todas aquelas escalas e notas e nada de memorável.” E esse diálogo entre Miles e o baixista Charles Mingus?: “Mingus, você é tão preguiçoso, cara, que nem modula essa p.... Só mete o acorde e bam!. O que é legal às vezes, saca, mas não o tempo todo.” “Miles, só toca essa merda do jeito que eu escrevi.” Que delícia.

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Miles faz a gente pensar ainda sobre Jimi Hendrix de uma forma nova. E talvez seja esse o único pensamento crítico negativo e bem embasado já feito sobre Hendrix. Para ele, o guitarrista não chegou aos jovens negros de seu tempo, não os atingiu como os velhos guitarristas do blues e do funk, e não fez nada para mudar isso: “Por mais que ele tivesse sido um grande músico e por mais que eu adorasse a música dele, pouquíssimos jovens pretos tinham ouvido falar nele. Os jovens pretos ouviam Sly Stone, James Brown, Aretha Franklin e Motown. Depois de tocar em muitas casas de rock branco, passei a me perguntar porque eu não tentava levar minha música a jovens pretos.”

Há ainda as revoluções musicais todas, histórias e muitas desavenças com Dizzy, Bird (em quem quase cravou uma garrafa de vidro no pescoço) e o purista Wynton Marsalis, um desafeto que se torna alvo por mais de duas páginas de seus impropérios. Há viagens, sendo o Brasil um de seus países preferidos por razões nem sempre nobres, e encontros com gente da música pop (seu maior ídolo era Prince). Mas o avanço das drogas em sua vida é demolidor e rende algumas das piores páginas do livro, talvez só menos assombrosas do que as histórias de alguns de seus relacionamentos com mulheres, muitas mulheres, às vezes mulheres ao mesmo tempo, e da forma com a qual Miles Davis se refere a elas. Impossível não sentir tristeza ao lermos algo assim saindo do mesmo homem que tocava Round Midnight daquele jeito: “Se você deixar passar demais com uma mina sabichona e competitiva, ela vai continuar a te peitar fazendo bico, cutucando cada vez mais. Aí você vai ficar puto e talvez bata nela. Eu me via muito nesse tipo de situação com mulheres irritantes e acabei batendo em algumas.” Está tudo lá, o pior e o melhor de Miles, e é por isso que não haverá autobiografia mais honesta e impiedosa.

Capa do livro da editora Belas Letras Foto: Reprodução / Belas Letras
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