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O jazz renasce com Wallace Roney

Trompetista cada vez mais incensado no universo jazzístico encontrou uma maneira de fundir suas maiores influências e lidera apresentações que levantam o público pela reinvenção de melodias, harmonias e ritmos

Por Agencia Estado
Atualização:

Aqueles que ouviram as últimas apresentações do trompetista Wallace Roney experimentaram a arte de um dos músicos responsáveis pelo renascimento do jazz, que teve início da década de 80. Ouviram, também, um dos melhores líderes de bandas musicais, pois Roney encontrou uma forma pessoal de fundir suas três maiores influências na composição, arranjo e execução em grupo - Miles Davis, John Coltrane e Herbie Hancock, instruído pelo estudo e execução que fez com Ornette Coleman. O que se ouve é um manejo do simples e do complexo assim como uma abordagem ao improviso em que formas e métodos podem ser reordenados durante a execução, permitindo aos músicos redefinir a melodia, harmonia e ritmo com uma liberdade que faz com que cada apresentação seja cheia de suspense, arrebatadora e imprevisível. É o que se deve esperar de Roney que, muito antes de conquistar o reconhecimento do público, já era tido em alta conta por seus colegas. Começo - Nascido na Califórnia, em 1960, cresceu em um lar onde imperava o soul; o músico favorito de seu pai era Miles Davis e de sua mãe, Thelonious Monk. Portanto, sempre ouviu improviso de jazz de primeira. Começou a estudar música e trompete aos cinco anos. Na adolescência, freqüentou a Duke Ellington High School for the Performing Arts, em Washington, e seu nome já era graduado com uma grande estrela no mundo dos jovens músicos. Em 1979, conquistou o prêmio de melhor músico jovem de jazz do ano, concedido pela revista Down Beat. Mas esses elogios prematuros para Roney nem sempre foram compartilhados pelos críticos de música. Muitas vezes foi considerado como um pouco mais que um clone de Miles Davis. Era a forma de os críticos dizerem que o fato de Roney basear seu trabalho no trabalho de um grande músico era um pecado contra o tipo de padrão muitas vezes descrito como "de ponta". Mas a extensão do seu talento é algo que outros músicos há muito já tinham reconhecido. "A primeira vez que ouvi falar de Wallace Roney estava no segundo-grau", disse Wynton Marsalis. "As pessoas me disseram que havia alguém sério, de Washington. E quando o conheci, fiquei abismado com seu conhecimento musical e com o que saía do seu instrumento quando tocava. Desde então, ele tem mantido este nível de seriedade ao longo de todos esses anos. Este homem nunca se deixou desviar, o que é uma proeza da mais alta integridade na época de hoje". Debut - Lembro-me de ter ouvido Roney pela primeira vez em 1976, no Ali´s Alley, uma casa noturna que teve vida curta no Soho, de propriedade de Rashiedc Ali, o último baterista de John Coltrane. Roney, um jovem negro tímido, de pele escura, bem-apessoado, fazendo seu debut em Nova York aos 16 anos, sentou-se junto ao baterista Philly Joe Jones. Assim que Roney começou a tocar, o nível de ruído no club imediatamente caiu sensivelmente, e aqueles que conversavam, riam e faziam brincadeiras voltaram sua atenção para o tablado. Gente que estava no fundo do salão veio para a frente para ouvir o trompete. Havia muito de Lee Morgan na execução do trompete e a paixão pelo jazz era tão completa que o clima dentro do clube modificou-se completamente. No final da execução, o salão foi tomado por um estado de espírito loucamente exultante e os aplausos foram ininterruptos. O saxofonista Greg Osby conheceu Roney quando ambos tinham 18 anos e eram estudantes da Berklee School of Music de Boston. Osby diz que nessa época Roney já impressionava seus colegas músicos e que esse alto conceito pouco mudou desde então. "O que a maioria das pessoas ainda não sabe é que ele é um músico muito talentoso", disse Osby. "Não só tem um registro perfeito, mas tem, também, a suprema versão dele. Já o vi esquematizar arranjos inteiros sem ajuda de seu trompete ou do piano. Wallace também despertou minha atenção para os fundamentos da "navegação improvisatória". Detalhou os pontos mais refinados da lógica melódica, como as frases melódicas se relacionam umas com as outras e como a melodia se relaciona com os acordes". Osby recorda-se da vez em que Roney escreveu para ele as alterações nos acordes da Cherokee padrão. "Ainda tenho a fita cassete de nós dois tocando isso", disse Osby. "Ele toca piano e eu, saxofone. É a minha primeira tentativa de relacionar harmonia com resultado melódico. Nunca esquecerei disso". No início dos anos 80, Roney era um trompetista bem treinado, totalmente consciente da tradição desde Louis Armstrong. O baixista Peter Washington observou essas qualidades quando trabalhou com Roney em Art Blakey e sua banda, os Jazz Messengers. "Ainda me espanta o conhecimento dele de todos os elementos do jazz - metais, saxofones, piano, baixo, baterias, arranjos e tudo o mais", disse Washington. "Estava sempre estudando e tentando aperfeiçoar seu desempenho e sua compreensão da música em todos os níveis. Seu vocabulário harmônico é enciclopédico, consegue tocar a partir de qualquer harmonic bag. Neste momento, está no ponto em que simplesmente está tocando o que ouve. É completamente livre para fazer o que quer que deseje fazer". Parceiros - Esse conhecimento enciclopédico e essa liberdade são o resultado do trabalho com uma série de músicos, que vão desde Jay McShann a Ornette Coleman e inclui Philly Joe Jones, Cedar Walton, Wayne Shorter, Herbie Hancock, Ron Carter, Tony Williams. Elvin Jones e Sonny Rollins, alguns dos mais respeitados nomes do jazz. Sua experiência em apresentar-se junto com bandas explica porque Miles Davis o escolheu para ser um dos convidados no concerto de Davis em Montreaux-1991, que foi uma de suas últimas apresentações, e também porque Roney foi convidado para tocar em uma festa em comemoração ao 70º aniversário de Coleman, no início deste ano. Na década de 80, o jazz foi considerado ultrapassado, mas Roney, como Marsalis, estava na linha de frente do movimento que procurava reafirmar a vitalidade atemporal dessa arte. Ele investigou a invenção melódica livre e o malabarismo harmônico característicos de Davis, Coltrane, Coleman e Shorter - aparentemente sem se sentir desconcertado com as comparações desairosas com Davis. Os resultados ficaram evidentes para músicos como o saxofonista George Coleman: "Não há ninguém a não ser Wallace capaz de administrar essa coisa cromática fora do convencional que Miles Davis tocava", disse ele. "Ninguém mais consegue ouvir o que é. Captar uma coisa como essa, que ninguém mais fez, e tocá-la com essa precisão, você tem que respeitar a originalidade disso." Defesa - O baixista Ron Carter, que trabalhou com Davis no último grande quinteto do músico e compartilhou muitas apresentações com Roney, defende-o contra seus críticos. "Wallace parece ser o único trompetista que entende como Miles fazia o que fazia. Ele não apenas imitou a ordem das notas mas compreendeu porque elas estão nessa ordem. Como compreende o conceito bem além do estágio do imitador, é capaz de levá-lo até o próximo nível de harmonia, espaço, fraseado e atingir sua própria individualidade. Está na hora de as pessoas reconhecerem isso". Washington afirma que Roney há muito desenvolveu "seu próprio som, grande e dark". É também verdade que a influência do trompetista Don Cherry sobre Roney nunca foi apropriadamente observada. Ignorou-se o fato de que sua execução expressa alegria, pathos, emoções súbitas e inesperadas, assim como melancolia nobre, sensualidade e humor, transmitidos de Davis para Cherry. No momento, porém, o que é mais interessante em Roney é a forma como ele está trabalhando com sua banda, tentando definir um conceito de conjunto em que cada instrumentista pode refazer sua parte em resposta ao que executante principal está fazendo. A música de Roney incorpora a essência do jazz, tanto tirando proveito dele como construindo em cima dele. Como todos os músicos de jazz de qualidade superior, ele baseia sua música em suingue, blues, baladas e ritmos afro-hispânicos. Nem mesmo discos soberbamente realizados como The Wallace Quintet e Village captam o fervor, nuance e aventura de suas execuções públicas. Portanto, a melhor ocasião para conhecer o trabalho deste artista é sentar-se na platéia e deixar-se levar para alguns lugares novos.

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