Crítica: Excelente - O Bach de Aimard injetou intensa dramaticidade às vinhetas de Kurtág
“Diga-me o que você toca e eu te direi quem és”, provocou o pianista francês Pierre-Laurent Aimard na aula inaugural do Collège de France em 2009, transformada num livrinho de 45 preciosas páginas. “O repertório de cada intérprete é o espelho de suas convicções profundas.”
Anteontem, na Sala São Paulo, Aimard mostrou excepcional talento e inteligência superior a um público que não conseguia arredar pé, mesmo com os atrevimentos típicos da música contemporânea de Kurtág ou Messiaen, já que eles se entremeavam com prelúdios e fugas do Cravo Bem Temperado de Bach. A corajosa atitude da Sociedade de Cultura Artística precisa ser elogiada. Não por militância pela música do nosso tempo, mas por bancar esses recitais, dificilmente superáveis na condição de melhores de 2015.
Em nosso tempo, diz Aimard, “o que é considerado ‘o’ repertório da música dita clássica, dos clássicos vienenses aos últimos pós-românticos, vem sendo interpretado de modo cada vez mais impecável, mas geralmente menos inspirado”. É a tal da perfeição técnica que incomoda. Aimard assinala que os recitais ecléticos funcionam como restaurante-rodízio e indica o remédio: montou um recital que é uma real “composição”.
Foram duas grandes “suítes”. Na primeira parte, 40 minutos de entrelaçamentos entre Bach e as micropeças rarefeitas de Gyorgy Kurtag, hoje com 89 anos; na segunda, de 60 minutos, Bach contracenou com alguns dos Vinte olhares sobre o menino Jesus, de Olivier Messiaen, extraordinário caleidoscópio de refinamento e virtuosismo.
Vibrante. O Bach de Aimard – sanguíneo e vibrante, numa palavra, humano – injetou intensa dramaticidade às vinhetas de Kurtág, num tabuleiro agridoce delicioso. Nada ao acaso, tudo com uma lógica profunda, estrutural.
Essa justaposição consciente faz sentido. Ilumina mutuamente a audição dos compositores distantes no tempo. E prova sua tese de que “em nosso mundo multicultural”, o do YouTube com toda a história da música ao nosso dispor, o recital deve “organizar uma rede de obras atestando uma visão da história, da atualidade e das permanências composicionais”.
Com a racionalidade de uma lendária partida de xadrez de Bobby Fischer e uma execução superior, apaixonada, Aimard prova que “o confronto de obras pode ser interrogação do presente à luz do nosso patrimônio e um reexame de nossas heranças à luz do imprevisível ‘hoje’”.
Afinal, pianista não precisa ser papagaio a repetir o repertório das obras-primas do passado só porque o público gosta; nem, na expressão de Aimard, ser “um vendedor de supermercado de música nova”. Furores xiitas de ambos os lados à parte, essas duas incríveis suítes – que soam como geniais “playlists” do iPod de Aimard – desmontam qualquer preconceito.