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Ney Matogrosso, camaleão libertário, lança caixa de CDs

Cantor tem boa parte da discografia dos anos 1970 ao início dos 90 reunida em caixa de luxo com 17 CDs

Por Lauro Lisboa Garcia
Atualização:

Valeu a longa espera. Finalmente os álbuns da fase inicial de Ney Matogrosso chegaram ao CD, em edição luxuosa, numa caixa com 17 títulos, em edição conjunta das gravadoras Universal, Warner e Sony/BMG. Camaleão cobre todo o período ascendente da carreira-solo de Ney, logo depois da saída dos Secos & Molhados, na década de 1970, atravessa os famigerados anos 80 e chega ao início da década seguinte com o célebre encontro do cantor com o violão de Rafael Rabello, em À Flor da Pele (1991). Dentre os álbuns inéditos em CD estão o primeiro (Água do Céu – Pássaro, de 1975), Bandido (1976) e Pecado (1977).   Veja também: Ouça trecho de'Açúcar Candy', de Ney Matogrosso  Ouça trecho de 'As Ilhas', de Ney Matogrosso      "Era uma coisa que estava há tempo para sair, que eu já tinha desistido. Achava que não ia mais acontecer", diz o cantor. "Acho interessante ter esses registros todos à disposição das pessoas. Hoje, tenho já caminhado mais e podido experimentar muita coisa, quando olho para isso, eu me reconheço ali."   Dos anos 1970 são os títulos mais importantes, não apenas pelo sentido libertário de várias canções que Ney gravou, mas pelas oportunidades que teve de experimentar sonoridades. Se hoje Madonna é considerada ícone gay planetário, por ter contribuído para o mundo sair do armário, Ney foi pioneiro, antes dela, no Brasil, com suas ousadias sexuais nas gravações, na escolha das canções, atitudes pessoais e atuações no palco. Não se pode esquecer, porém, de dar crédito a Caetano Veloso, grande inspirador de Ney no auge do desbunde tropicalista.   Açúcar Candy, de Sueli Costa e Tite de Lemos, incluída em Água do Céu – Pássaro, é um grande marco dessas ousadias de Ney. Até ele se espantou quando soube que a canção era de um projeto infantil. A letra lasciva diz: "Tua pistola dispara baunilha na minha boca, no meu dorso/ Ai, precipício! Que poço de delícias/ Ai, que vertigem! Ai que desmaio." Acrescente-se a isso a interpretação abusadamente afetada de Ney e sua performance no palco, simulando uma masturbação, no auge da ditadura militar. Só podia resultar no pretendido escândalo.   A capa de Pecado (que tem excelente repertório com canções de Milton Nascimento, Rita Lee, Raul Seixas, Caetano Veloso, Tom Jobim, e soa melhor com a remasterização do que soava na época do LP) era para ter a foto que está na contracapa, com Ney simulando um orgasmo. A imagem era do show, em que ele fazia um strip-tease cantando Boneca Cobiçada (Biá/Bolinha), mas a gravadora não aceitou a provocação. A censura implicou com o verso "esquina silente do Brasil", do tango Retrato Marrom (Fagner/Fausto Nilo/Rodger Rogério).   Em Feitiço, mais ousadia com a imagem de nudez total na parte interna da capa dupla do LP e a transgressão estética de Não Existe Pecado ao Sul do Equador, em que arremete o protesto político de Chico Buarque para as pistas de dança, em ritmo da então ascendente disco music. Ney, que é arredio aos modismos, quase não aceitou a proposta de Mazzola para gravá-la desse jeito.   Ney fechou o ciclo na Continental/Warner com outros dois bons álbuns, Seu Tipo (1979) e Sujeito Estranho (1980), ambos marcados por outras incursões na canção sensual e no universo gay. Tinha a de Eduardo Dusek e Luiz Carlos Góes, que dá título ao primeiro, Ardente (Joyce), e Encantado, versão de Caetano Veloso para Nature Boy (Ahbez), Napoleão (Luli/Lucina), Doce Vampiro (Rita Lee). Outras interpretações antológicas nesses discos são a do choro Falando de Amor (Tom Jobim/Vinicius de Moraes), duas de Ângela Ro Ro (Não Há Cabeça e Balada da Arrasada) e duas dos então Doces Bárbaros baianos Caetano Veloso (Um Índio) e Gilberto Gil (O Seu Amor).   Além do estouro nacional com os Secos & Molhados, o período em que Ney mais tocou em rádio depois de Bandido e Feitiço foi nos anos 80, quando trocou a gravadora Warner pela Ariola (cujo acervo pertence hoje à Universal) e deixou tudo na mão de Mazzola. O primeiro dessa fase foi Ney Matogrosso (1981), recentemente selecionado por Charles Gavin e colaboradores para o livro 300 Discos Importantes da Música Brasileira. Com este álbum, Ney superou todos os êxitos anteriores ao gravar pela primeira vez um forró, Homem com H (Antonio Barros). Além desta, emplacou Amor Objeto (Rita Lee/Roberto de Carvalho), Vida Vida (Zeca Barreto/Guilherme Maia/Moraes Moreira), a balada Viajante (Tereza Tinoco) e a marchinha Folia no Matagal (Eduardo Dusek/Luiz Carlos Góes), cheia de safadeza.   A partir daí veio uma seqüência de seus álbuns mais fracos e despersonalizados: Mato Grosso (1982), ...Pois É (1983), Destino de Aventureiro (1984) e Bugre (1986). O som desses discos ficou datado. É o que se chamava "pasteurizado", com aquela dolorosa combinação de teclados, sax e bateria eletrônica reverberada. "Isso aí é uma interferência direta do Mazzola", diz Ney sobre essa fase mais pop. "Trabalhei com ele durante muitos anos e nesse período eu não opinava mesmo porque ninguém me perguntava. E eu ficava inseguro, até que um dia determinei que eu ia opinar e decidir o meu trabalho e a minha vida."   A guinada veio com o álbum ao vivo Pescador de Pérolas (o primeiro na então CBS, hoje Sony/BMG), ao lado de Rafael Rabello, Arthur Moreira Lima, Paulo Moura e Chacal. Foi quando Ney, que tinha aparecido pela primeira vez sem fantasia na capa de Seu Tipo, simbolicamente tirou a máscara de vez e mergulhou no repertório clássico da música brasileira. É seu "divisor de águas". "Eu era muito restrito a uma coisa só, mas a partir de Pescador de Pérolas (1987) fui libertado, pude experimentar mais, porque me senti seguro para isso. Pude cantar Cartola, gravar discos temáticos, me despreocupar com essa história de tocar em rádio. Quando não há mais essa preocupação você fica mais livre para criar."

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