PUBLICIDADE

Neschling em primeira pessoa

Em 'Música Mundana', maestro relembra, sem revelações, seus anos de trabalho à frente da Osesp

Foto do author João Luiz Sampaio
Por João Luiz Sampaio
Atualização:

 

SÃO PAULO - Chama-se Música Mundana o livro que o maestro John Neschling, responsável pela reestruturação da Osesp entre 1997 e 2008, lança no início de novembro. Aguardado com expectativa, imaginava-se que o livro abalaria a república musical brasileira. A obra, no entanto, é um conjunto saboroso de histórias da carreira do maestro; surpreende pelo tom comedido com que ele relembra os momentos mais conturbados de sua gestão à frente da orquestra, em especial sua demissão em janeiro; e decepciona pela ausência de referências a outros episódios polêmicos, como o desentendimento com o então maestro assistente Roberto Minczuk ou as suspeitas de fraude no concurso de piano criado pela orquestra.

 

PUBLICIDADE

"Procurei, no esforço para que este livro não se transformasse meramente numa reportagem jornalística, entremear o relato sobre a construção da Osesp com algumas reflexões e racontos sobre a minha formação como músico e regente de orquestra. (...) Não consultei nenhum documento, mas confiei unicamente na minha memória. E a memória, como todos sabem, além de seletiva, por vezes nos prega peças. Peço perdão, portanto, caso alguém encontre aqui alguma imprecisão. E garanto a verdade subjacente em tudo o que quis comunicar", escreve o maestro na apresentação. E parte, então, para o relato de experiências como a decisão de ser músico, os primeiros estudos, a vida entre a cultura brasileira e a alemã; relembra artistas que mais o marcaram; o trabalho com grupos europeus; o contato com a ópera; a relação com alguns dos principais pilares do repertório; a atividade como compositor; e assim por diante.

 

A Osesp é o eixo da narrativa, abre e encerra o livro, e é natural que assim o seja, uma vez que o próprio Neschling considera o projeto a principal realização de sua carreira. A maior parte da obra, que será lançada pela Rocco no dia 9 na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, é dedicada às negociações, em meados dos anos 90, com o então secretário de Estado da Cultura Marcos Mendonça, que o convidou a voltar ao Brasil para dirigir a Osesp. Ao relatar suas dúvidas sobre participar ou não do projeto, ele desfia todo o contexto que acreditava ser necessário para a criação de um projeto sinfônico consistente. De certa forma, deixa assim o testamento de uma "fórmula Neschling" de trabalhar e insiste na importância de vontade política na concretização de qualquer projeto. Fala pouco sobre a fama de autoritário e defende a demissão de membros da comissão de músicos em 2001, primeiro "escândalo" da nova fase da orquestra. Os músicos haviam tomado partido de um colega que se desentendera com Minczuk durante um ensaio e, segundo Neschling, a demissão foi decisiva para que a Osesp sobrevivesse - naquele instante, escreve, definiu-se de alguma forma o sucesso do grupo. No mais, o maestro passa ao largo de episódios como a suspeita de fraude na seleção de candidatos do concurso de piano, em 2007. o desentendimento com diretores executivos do grupo, ou das polêmicas com relação ao seu salário.

 

Sobre sua saída da Osesp, não há revelações. O maestro reconta a versão que já havia oferecido em entrevista ao Estado, em dezembro do ano passado, reforçando a ideia de que houve movimento de perseguição política que, articulado desde a chegada de José Serra ao governo do Estado, foi rapidamente tornando insustentável sua permanência na orquestra. Neschling não cita ninguém nominalmente. Parágrafo após parágrafo, no entanto, deixa transparecer certa mágoa - e não esconde a sensação de ter sido traído. "Até hoje não voltei mais à Sala São Paulo. Não pude nem ao menos despedir-me dos músicos e colegas."

 

TRECHO DO LIVRO:   (...) Pedro Prado propôs-me reger a Nona Sinfonia de Mahler no ano seguinte. Mas aí o buraco já era mais embaixo. Aos vinte e um ou vinte e dois anos, aventurar-se pelos labirintos mahlerianos é uma empresa quase suicida. A Nona Sinfonia do compositor é das obras mais complexas e longas do repertório sinfônico. Para um jovem inexperiente tratava-se de uma inconsciência. Por outro lado, só um jovem inexperiente é mesmo capaz de cometer tal inconsequência ingenuamente. Aceitei o desafio que hoje titubearia em aceitar...   Não sei quantas horas passei debruçado sobre essa obra colossal, comparável na literatura a um Doutor Fausto de Thomas Mann ou a um Ulisses de James Joyce. Tampouco ouso afirmar o quanto fui capaz de captar e entender daquele mundo. Tecnicamente estava preparado para conduzir a orquestra pelos tortuosos desvios mahlerianos. Mas é como um pianista superdotado que aos catorze anos, tecnicamente preparado, aventura-se pela sonata Hammerklavier de Beethoven. Quanto do verdadeiro conteúdo desse monumento o garoto consegue entender e interpretar? Só o tempo e a experiência musical de uma vida permitem uma compreensão profunda de uma obra desse calibre. Assim, devo confessar que ignoro completamente o resultado do concerto. Não ignoro, entretanto, a minha felicidade de ter passado aquela hora e pouco viajando com a orquestra por mares nunca dantes por mim navegados.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.