Na pandemia, músicos profissionais e amadores soltam a voz nos palcos de casa

Cantar é o paliativo ideal para certas dores da alma, para combater o estresse e o desânimo

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Por Gilberto Amendola
Atualização:

Quem canta seus... Vocês sabem, não é? A música popular já nos ensinou que “cantar é mover o dom”, é “buscar o caminho que vai dar no sol” ou simplesmente que “alguém cantando é bom de se ouvir”. Cantar é o paliativo ideal para certas dores da alma, para combater o estresse e o desânimo.

Juliana Sucupira, musicista profissional que no auge da pandemia começou a cantar da sua varanda Foto: Wilton Junior/Estadão

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Sem a possibilidade de frequentar shows ou karaokês, amadores e profissionais fizeram de suas casas, salas, varandas e chuveiros os principais palcos da cidade. Em tempos pandêmicos, cantar é um ato de resistência e amor à vida. A história da cantora Juliana Sucupira é emblemática. No início da pandemia do coronavírus, em março de 2020, ela viu as apresentações minguarem, os contratos sendo cancelados e as incertezas relacionadas ao futuro aumentarem. “Um dia, estava no sofá com o meu marido e comecei a ouvir o sino de uma igreja. A rua estava vazia e aquilo aguçou minha sensibilidade. Fui pra varanda e cantei uma Ave Maria”, contou. Ao ouvi-la cantar, uma vizinha da frente pediu para que soltasse a voz, que cantasse mais alto. Foi então que Juliana se debruçou na janela e cantou como se estivesse interpretando uma ópera. “Um monte de cabeças começou a aparecer nos prédios vizinhos. Cantei mais e vieram muitas palmas”, disse. Aquela apresentação-surpresa se transformou em um hábito diário que durou 105 dias seguidos – sempre às 18h. As apresentações de Juliana transformaram-se em um evento no bairro da Gávea, no Rio. A vizinhança se preparava cotidianamente para cantar junto ou apenas aplaudir. “Comecei a melhorar as apresentações com microfone e alguma amplificação. Eram 3 minutinhos diários, gotinhas de esperança”, afirmou. Em consequência desses shows improvisados, a vizinha estreitou laços de amizade nas redes sociais e grupos de WhatsApp. “Comecei a receber muito feedback. Ganhei muitos presentes, cestas de café da manhã, bichinhos de pelúcia. Uma vizinha me escreveu que o pai de 80 anos, que estava em depressão, começou a cantar comigo”, enumerou.  Juliana chegou a pegar covid e precisou ser internada. Quando voltou para casa, centenas de vizinhos se organizaram para recebê-la ao som de Como É Grande o Meu Amor Por Você (Roberto Carlos). Hoje, Juliana continua apresentando-se todos os dias (quase nunca falha), mas as apresentações deixaram a varanda do apartamento e foram para o Instagram – com lives diárias em que ela interpreta ao menos uma canção. Mas nem só os profissionais da música estão soltando a voz neste momento. Cada cantor de chuveiro, churrascaria ou karaokê tem o direito inalienável de se apresentar dentro de suas próprias casas.  Veja o caso do Daniel Violla, especialista em corretagem, que é apaixonado por karaokê desde 1995. “Em 95, eu comprei com a minha mãe um aparelho gigantesco com cartuchos. Desde então, a família inteira é louca por cantar. Cantamos em festas de aniversário, Natal... É sempre uma cantoria”, falou Violla.  Agora, durante a pandemia, Violla e família costumam cantar de 3 a 4 horas por dia. “Você fica em casa, liga a televisão e está passando sempre a mesma coisa. Ainda mais agora, só tem notícia pesada da covid. Então, a gente costuma tirar algumas horas para cantar. A gente pede uma pizza e liga o videokê”, disse. Uma das preferidas de Violla é Quando Gira o Mundo, de Fábio Junior. Outra cantora caseira é a Ana Beatriz Queiroz. Ela aproveitou a pandemia para se mudar de São Paulo e ir morar com os pais em uma fazenda em Mato Grosso do Sul. “Gosto muito de MPB, mas aqui em casa minha mãe é mais do gospel. Sei que sou desafinada, não tenho pretensões, eu gosto de cantar pela performance, dança e coreografia. É o que faço aqui com a minha família”, contou. “A música influencia muito no humor. Quando estou de bom humor, ouço uma palavra e já vou buscar uma música na memória. A música faz a gente sentir. E isso é muito importante agora”, completou Ana. A pandemia fez com que um coordenador de experiência do cliente, Alex Reis, montasse um pequeno estúdio em sua casa e comprasse instrumentos novos (violão, teclado, cavaquinho, escaleta e outros). “Uso para espairecer. Gravo coisas para mandar para os amigos e postar nas redes sociais. A gente vive dias tão pesados que cantar, mesmo que sozinho, muda meu estado de espírito”, afirmou.

Aulas

O professor de canto Rafael Barreiros contou que, além da migração das aulas para o ambiente digital, novos alunos começaram a aparecer durante a pandemia. “Aulas de canto à distância existem desde os anos 1970 (por telefone), o que parece diferente é que, com as restrições (da pandemia) e o isolamento, muita gente tem procurado aulas de canto. Além dos profissionais, muitos amadores querem se desopilar, desestressar, gente que procura o canto como terapia, para vencer bloqueios e se sentir mais feliz mesmo. Tenho alunos que são aposentados, que nunca cantaram e que agora despertaram para isso”, falou. Barreiros tem desde aulas pré-gravadas como acompanhamentos personalizados (online). Além de aulas, quem tinha a mistura de karaokê com show ao vivo como base do seu negócio precisou se reinventar. Gustavo Salles, empresário da Live Karokê, vivia da promoção de shows ao vivo em que a plateia subia no palco para cantar junto com uma banda de verdade. Com a pandemia, as coisas precisaram mudar. Salles e equipe tiveram de adaptar as apresentações ao vivo para o ambiente virtual. Na Live Karaoke, uma banda fica disponível em um estúdio para que a plateia possa cantar na segurança (e distanciamento) do próprio lar. “A gente fez cerca de 100 apresentações só em dezembro. É um produto voltado para empresas, festas de confraternização, dinâmicas... Tem dado tão certo que imagino seja uma modalidade que irá sobreviver mesmo depois da pandemia”, comentou Salles. 

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