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Na música erudita, emoções fortes dentro e fora do palco

Qualidade que impera em 2014 eleva a expectativa para 2015

Foto do author João Luiz Sampaio
Por João Luiz Sampaio
Atualização:

O público da ópera em São Paulo está acostumado a emoções fortes. A trajetória do gênero por aqui, afinal, é marcada por idas e vindas, projetos que nascem a duras penas e chegam ao fim de uma hora para outra. Mas 2014 termina com um lampejo de otimismo com as duas produções encenadas em dezembro, As Bodas de Fígaro, no Teatro São Pedro, e Tosca, no Teatro Municipal. Não apenas pela qualidade dos trabalhos – mas também pelo simbolismo que eles carregam.

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As Bodas de Fígaro foi o primeiro título produzido no São Pedro sob direção artística de Luiz Fernando Malheiro. Em Manaus, onde fez do Festival Amazonas um projeto reconhecido internacionalmente, ele pautou seu trabalho pelo espaço dado ao cantor brasileiro e por um repertório que mescla títulos conhecidos, peças brasileiras e obras-primas do século 20. As mesmas características estão presentes na primeira temporada dele para o São Pedro, em 2015. E o que parecia interessante no papel ganhou forma com as Bodas, em que o desempenho de orquestra e solistas sugeriu novo padrão de qualidade para o teatro.

No Municipal, o processo de renovação teve início antes, no começo de 2013, com a chegada de John Neschling à direção artística. O objetivo da nova gestão sempre foi fazer do teatro uma referência internacional – e a Tosca coroa um ano em que grandes solistas, como Ambrogio Maestri, Inva Mula, Ainhoa Arteta, Roberto Frontali, Stuart Neill ou Marcelo Álvarez, estiveram sobre o palco, encarnando papéis que já os levaram às principais casas do mundo. Mais importante, porém, é testemunhar o crescimento constante dos corpos estáveis – orquestra e coros –, aliado a uma nova relação trabalhista, com o início da celetização dos músicos.

'Tosca'. Com a obra de Puccini, o Municipal de São Paulo torna-se referência internacional Foto: DESIREE FURONI/DIVULGAÇÃO

Houve, é verdade, sobressaltos motivados pela não renovação do contrato de 15 cantores do Coral Lírico e do Coral Paulistano, corpos estáveis do Municipal. Mas não deixa de ser simbólico que questões de ordem administrativa e estrutural ganhem importância nesse momento. Isso porque tanto o Municipal quanto o São Pedro, nesse momento, trazem ao universo da ópera um formato de administração até então relegado a projetos sinfônicos: a gestão por meio de organizações sociais. Cada teatro segue um modelo distinto, mas o desafio é o mesmo: a criação de projetos de longo prazo, que possam de fato ter consequência no cenário operístico brasileiro, deixando de lado a lógica de evento.

Nesse sentido, é preciso ressaltar projetos de formação de artistas e de público que têm ganho corpo. No Municipal e no São Pedro, há um movimento importante de experimentação de formatos nesta direção. E ele se soma a iniciativas como a Ópera Curta, que abre espaço a cantores e viaja pelo interior do Estado de São Paulo cultivando plateias e o gosto pela ópera; e o Núcleo Universitário de Ópera, que, agora com espaço próprio, quer intensificar a investigação estética que alinha o gênero às principais correntes teatrais dos séculos 20 e 21.

Diretores. Ainda que simbólicos, As Bodas de Fígaro e Tosca não foram os únicos espetáculos importantes do ano. No próprio Teatro São Pedro, o maestro Emiliano Patarra, que iniciou o processo de renovação da casa, despediu-se dela com uma produção de Artemis, ópera que permitiu uma nova leitura da importância de Alberto Nepomuceno para a música brasileira. Já no Municipal, três destaques: o Falstaff de Ambrogio Maestri, a Cavalleria Rusticana/I Pagliacci que marcou a volta do maestro Ira Levin aos palcos de São Paulo e do diretor William Pereira ao teatro, e Salomé, musicalmente impecável sob comando de John Neschling, ponto de virada na trajetória da Sinfônica Municipal.

Entre desafios administrativos e grandes momentos musicais, é preciso dizer, porém, que este também foi, Brasil afora, um ano de diretores, responsáveis por montagens que parecem enfim se afastar da velha dicotomia “tradição versus vanguarda” em nome de leituras que, nascendo da música e do libreto, buscam um universo estético próprio. Assim, a profusão de referências habilmente traduzidas em um discurso narrativo fluente destacou-se no Mefistofele de Caetano Vilela, no Theatro da Paz, em Belém, assim como André Heller-Lopes, no circo montado para o Rigoletto do Palácio das Artes, em Belo Horizonte, pôde discutir os limites do espetáculo – e a própria ópera como gênero. Da mesma forma, Lívia Sabag voltou a trabalhar com refinamento e sensibilidade o gesto cênico, tanto em Salomé, quanto em As Bodas de Fígaro. Talvez um otimista não passe mesmo de um pessimista mal informado. Mas não custa desejar que as emoções fortes dos próximos anos fiquem, só para variar um pouco, dentro do palco.

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DESTAQUES

‘Salomé’, de Strauss - Montagem, encabeçada por John Neschling, foi ponto de virada na trajetória da Sinfônica Municipal

‘Mefistofele’, de Boito - Em Belém, inteligente releitura da história de Fausto por Caetano Vilela, na primeira encenação da obra no Brasil em 60 anos

‘As Bodas de Fígaro’, de Mozart - Leitura musical e cênica de Luiz Fernando Malheiro e Lívia Sabag sugeriram novo padrão de qualidade para o Teatro São Pedro

‘Artemis’, de Nepomuceno - A redescoberta de uma ópera e seu autor, o brasileiro Alberto Nepomuceno

‘Tosca’, de Puccini - No Municipal, Marco Gandini venceu o desafio de criar montagem instigante para um dos pilares do repertório

Temporada recheada tem projeto que cultiva o gosto pela ópera

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E há ainda Festival de Música de Câmara que viajou pelo Estado e pôs o gênero em mídias nunca dantes imaginadas

Por João Marcos Coelho / Especial para o Estado

Com a temporada mais recheada, a Osesp brilhou como nunca em três concertos: o primeiro, Candide, de Bernstein, com sua titular Marin Alsop. Os dois restantes com convidados: o polonês Stanislaw Skrowaczewski regeu uma quarta de Bruckner de arrepiar, Akiko Suwanai foi excepcional no concerto de violino de Alban Berg; e Richard Armstrong fez uma extraordinária Danação de Fausto, de Berlioz. O toque brasileiro ficou a cargo do violinista Luiz Fílip, esplêndido no concerto de Shostakovich. Entre os recitais, os dois memoráveis foram os de Jeremy Denk (as Goldberg mais a Concord de Ives) e Jean-Efflam Bavouzet (Beethoven e Bartok selvagens, o Ravel dos Miroirs parrudo).

As sociedades de concertos dividiram, com primazia para a Cultura Artística, os grandes espetáculos da temporada. Pela SCA: a dobradinha Mitsuko Uchida/Mariss Jansons com a Orquestra da Bavária; a violoncelista Sol Gabetta/Giovanni Antonini e Orquestra de Câmara da Basileia; e a maravilhosa noitada Vivaldi com o contratenor Philippe Jaroussky e seu Ensemble Artaserse. Pelo Mozarteum: Natalie Dessay e Laurent Naouri, Philharmonia com Ashkezany (um belo Imperador com Nelson Freire e uma Quinta de Sibelius incandescente).

Por causa do 70 anos do nosso maior pianista, Nelson Freire, ele tocou bastante no Brasil e houve vários lançamentos. Destaque para o Concerto Imperador com a Gewandhaus e Chailly e box de 3 CDs Radio Days (Decca), resgatando performances com orquestra dos anos 1970, incluindo um raro segundo de Liszt com Eleazar de Carvalho. 

Palmas para a vida musical contemporânea, que pulsou como nunca este ano. No Centro Cultural São Paulo, estreou mundialmente em abril, com o grupo Hespérides, o oratório digital A Geladeira, em que Paulo Chagas retrata a tortura pela qual passou aos 17 anos, na década de 1970; em outubro, estreou O Farfalhar das Folhas, peça de Flo Menezes, em concerto da 10.ª Bienal de Música Eletroacústica de SP, evento que prima pela qualidade. 

Sangue novo na(s) música(s) nova(s), com o Festival Música Estranha no CCSP com curadoria de Thiago Cury e o primeiro número impresso da revista Linda do NME – Nova Música Eletroacústica, movimento liderado por um grupo de compositores jovens, entre 25 e 30 anos.

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Além disso, dezenas de CDs de música nova viabilizaram-se graças ao Proac, vitrine da música nova. Um dos melhores e mais recentes é “3+2/SP” em que o trio piano-violino-cello Epifania, de Felipe Scagliusi, Simona Cavuoto e Alberto Kanji, faz cinco primeiras gravações mundiais de peças de Rodrigo Lima, Maurício de Bonis, Rodolfo Valente, Marcus Siqueira e Thiago Cury.

Porém, o mais surpreendente diferencial de 2014, em termos de música brasileira, é um novo olhar para um passado que até agora era patinho feio: o romantismo, a música do século 19. Três ótimos lançamentos de fim de ano: o livro Formação Germânica de Alberto Nepomuceno, de João Vidal (Ed. Escola de Música da UFRJ), traz pesquisa de primeira mão sobre o compositor cearense e modifica o modo como hoje se pensa a música brasileira pré-Villa-Lobos. Dois CDs atestam a robustez da produção musical brasileira do período. Primeiro, o CD Delírio, em que o violinista Emmanuele Baldini e a pianista Karin Fernandes tocam sonata de Leopoldo Miguez e duas, espetaculares, de Glauco Velásquez. E também no CD do português Artur Pizarro, responsável pela primeira gravação mundial do concerto para piano de Henrique Oswald, 128 anos depois de sua composição, ao lado da Orquestra da BBC de Gales, regida por Martyn Brabbins (selo Hyperion).

Por último, o Festival de Música de Câmara do Sesc, com 44 concertos espalhados pelo Estado de São Paulo, colocou o gênero em mídias nunca dantes imaginadas. E pode mostrar que o caminho das pedras é por aí. Mais do que nicho, nele pode estar o futuro de uma vida musical mais capilarizada pelo País.

DESTAQUES

Nelson Freire, 70 anos - Aniversário do nosso maior pianista foi muito comemorado com avalanche de excelentes CDs

Coro da Osesp, 20 anos - Naomi Munakata deu em 20 anos salto de qualidade à prática coral

CD ‘Artur Pizarro’ - Com concertos de Henrique Oswald e Alfredo Napoleão, o pianista português registra pela primeira vez o concerto de Oswald, que esperou 128 anos por isso

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‘Formação Germânica de Alberto Nepomuceno’ - Livro de João Vidal dá novo olhar para obras de Nepomuceno

Festival e revista - Festival Música Estranha e Linda, revista do NME – Nova Música Eletroacústica provam a vitalidade de novas gerações

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