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'Na Boca do Cão', de Sergio Roberto de Oliveira, trata do fazer artístico como resistência

Em cartaz até dia 30 no Rio, espetáculo deve iniciar temporada em SP

Foto do author João Luiz Sampaio
Por João Luiz Sampaio
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RIO - Se ópera e tragédia sempre andaram juntas, o espetáculo Na Boca do Cão, em cartaz no Rio de Janeiro, tem levado a associação a novos patamares. À própria inspiração para o libreto, baseado em um episódio da infância da soprano Gabriel Geluda, somou-se na quarta-feira, 19, a morte do compositor da obra, Sergio Roberto de Oliveira, após mais de um ano de luta contra um câncer. “Só consigo pensar em como essa ópera se recheia cada vez mais de dor - e transformação da dor”, diz Geluda.

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Na Boca do Cão estreou no final de junho no Centro Cultural Banco do Brasil e fica em cartaz até o dia 30 - a expectativa é, em seguida, iniciar temporada em São Paulo. Seu processo de criação foi coletivo: Oliveira trabalhou ao lado do poeta Geraldo Carneiro, responsável pelo libreto, que ganhou vida por meio da interpretação de Gabriela, orientada pelo diretor Bruce Gomlevsky.  “A ópera nasceu do luto”, diz Gabriela. “Ela é a flor de lótus: linda e que brotou na lama.” Acostumada a trabalhar na criação de novas obras, ela aqui envolveu-se duplamente. Com dois anos, foi levada pelo pai a uma padaria. E, na saída, um pastor alemão abocanhou sua cabeça. “O mundo talvez brilhando, lá do lado de fora, e ela prisioneira, ali, na boca do cão, do caos nosso de cada dia”, diz o texto de Carneiro.

A morte recente de seu pai reavivou na memória de Gabriela a história, recontada na ópera. “Ela parte de uma história pessoal e se torna um manifesto. Sim, a arte cura, a arte sublima, a arte liberta, a arte transforma e precisamos investir, valorizar, consumir, criar mais”, diz. “No início dos ensaios, me dei conta de que o caminho da encenação residia na investigação profunda das memórias de Gabriela e que o espetáculo resultaria inevitavelmente de uma autoexposição corajosa e despudorada da intérprete”, escreve no programa Bruce Gomlevsky.

Gabriela Geluda. Enredo da obra nasceu a partir da experiência de infância da soprano Foto: Dalton Valerio

A tentativa de repensar o universo da ópera, com um passado que permanece vivo e presente no repertórios dos grandes teatros, é de certa forma um maneira de reforçar essa tradição. A lógica como isso se dá, no entanto, é outra - em especial, no trabalho dos intérpretes. Aqui, não há convenções a serem respeitadas, ou repensadas à luz de uma nova época. Todo o discurso nasce da procura de uma outra forma de expressão, em que texto, música e intérprete dialogam de igual para igual na própria criação - com impressionante entrega de Gabriela e do trio de músicos formado por Ricardo Santoro (violoncelo), Cristiano Alves (clarinete/clarone) e Leo Sousa (percussão). 

Entendendo o trauma como ponto de partida da experiência de vida (com foco especial na ideia do desejo), a ópera flutua entre a narrativa dos acontecimentos e a reflexão sobre eles. Mas essa reflexão não é racional - parece fazer-se da intensidade quase física do sentimento, em diálogo com a música de Oliveira. A maneira como ele trata, em diferentes momentos, cada um dos instrumentos, em especial o caráter onírico sugerido pela percussão, esfumaça de maneira dramaticamente eficiente qualquer noção de linearidade. Estamos, afinal, falando de memória, de medos, de contradições e da necessidade, às vezes dolorosa demais, de transformação.

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