MV Bill, por dentro da Cidade de Deus

Enquanto o filme leva multidões aos cinemas, o rapper, que está lançando seu segundo disco, Declaração de Guerra, fala dos bastidores da favela. Ouça trecho da entrevista concedida dentro da Cidade de Deus

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Por Agencia Estado
Atualização:

Os soldados do morro estão em alerta. Um deles, que não tem mais de 12 anos, revólver na bermuda, vigia a entrada da favela com um rádio pendurado no pescoço. No meio da rua, mais de 40 vibram em volta de uma mesa de pingue-pongue. É um pelotão que se diverte armado. O "gerente do branco", homem que controla as finanças da cocaína, está tranqüilo e vê tudo de um bar. A criatura mais temida de Cidade de Deus, depois do dono do morro, Elias Maluco, tem 22 anos. Cidade de Deus é um inferno para os que não são bem-vindos. Sentado lá em cima, no terreno de uma escola quase abandonada, o rapper Alex Pereira Barboza, o MV Bill, espera pelo repórter. Vai falar sem ser censurado - e quando Bill fala até o tráfico se espanta - sobre seu segundo disco Declaração de Guerra, dar "sua verdadeira opinião" sobre o filme Cidade de Deus, colocar em xeque traficantes que usam crianças e atacar os políticos que se envolvem com o narcotráfico, além de denunciar - sem dar nomes - os jornalistas que lhe pedem cocaína nas entrevistas e tecer considerações sobre segregacionismo, ódio e preconceito (Ouça trecho da entrevista). O que você sentiu ao ver o filme "Cidade de Deus"? MV Bill - Espero não ter minha opinião distorcida agora, mas achei o filme esteticamente maravilhoso. Meu único reparo é que não houve um cuidado social. O filme só mostra o lado ruim de Cidade de Deus. Como filme é ótimo, mas para a sociedade é trágico. Vai ganhar muitos prêmios em festivais e Cidade de Deus fica com o troféu de favela mais violenta do mundo. O que você quer dizer quando canta que é o "pesadelo da elite"? Pelas coisas que falam de mim, é assim que me sinto. Há uma tendência natural em não entender as letras que faço. O que produzo sempre causa medo. Você mudaria de Cidade de Deus se pudesse? Não vejo esta necessidade. Me sinto bem aqui, as pessoas me respeitam. Acredito que posso contribuir mais continuando aqui. Lá embaixo, fora da favela, você seria mais um... Isso conta muito também. Você não acha que o rap vem sendo banalizado, feito com muitos clichês? Está na moda falar de questões sociais. Há músicos que ficam meio apagados e que tentam voltar ao cenário tratando destes temas. No rap criou-se uma cultura de que é preciso ser bandido para ter sucesso. Na realidade, narrar a situação de banditismo não é bom. Quando se fala de crime você tira a esperança. E muitos grupos estão banalizando o assunto. Boa parte do rap está banalizando o assunto, sem autenticidade. Os que respeito são Sabotage, Rappin Hood e Consciência Atual. Por que você diz que os negros têm de se unir e afrontar o "poder da elite branca"? Nossa vida inteira pós-África foi ignorada pelos brancos. Não temos de esperar mais ajuda de cima para baixo. Ainda somos muito desunidos. Temos de ignorar agora esta ajuda e pensar em nós. Este pensamento não pode gerar mais ódio racial? Sim. Mas seria um ódio legítimo. Os meios de comunicação fomentam a idéia de que o preto é secundário, de que não tem papéis importantes na sociedade. O ódio seria a forma de despertar as consciências dos negros. Você não interpreta um personagem que criou para si mesmo? Por exemplo: sou da imprensa, branco, classe média, tudo o que você diz odiar. Se me odeia mesmo, por que me recebeu tão bem? Mas quem disse que eu odeio você? Eu só não dependo de você. Não tenho ódio do branco, só não quero depender dele. Mas quando você fala que o ódio do negro pode ser legítimo, não corro o risco de ser assassinado aqui no morro só pelo fato de ser branco? Não falo sobre este tipo de ódio, de ver um branco na rua e matar. Mas se você, como branco, acha que o ódio é tão perigoso, por que não faz algo para evitar que este sentimento continue? A resposta não tem de ser minha, tem de ser de vocês brancos. É o que você acha? Quando vamos brigar socialmente, vocês estão sempre em vantagem. Se você trabalha em um jornal e não faz nada, só nos resta o ódio a te oferecer. Não damos amor para quem nos massacra, para quem nos sufoca. Como você convive com os traficantes? Seu discurso não te coloca em algumas situações constrangedoras? O tráfico de drogas não faz bem para a comunidade. Mas, por outro lado, são jovens como eu que estão envolvidos com ele. Moro aqui e sei que em Cidade de Deus não existe pé de fuzil e nem plantação de coca. A força maior está fora da favela. Então descubro que estes jovens são apenas soldados do tráfico. Os grandes traficantes não são eles. E a polícia acaba sendo vítima também. Apenas um órgão que reproduz o pensamento da elite. É a primeira vez que ouço um rapper dizendo que a polícia é vítima de alguma coisa.... Se eu tivesse dinheiro, acho que iria estudar sociologia. Você participou do tráfico em algum momento da sua vida? Morar em uma comunidade pobre é viver em perigo constante a ponto de você ser conivente com o tráfico mesmo contra a sua vontade. Isso é meio complicado, prefiro não falar nesse assunto. Qual sua opinião sobre o assassinato de Tim Lopes? Houve imprudência da Globo? Olha cara, esse é um assunto bem complicado. Prefiro nem falar. Não sei quem era o errado. Mas ... para fazer qualquer coisa na favela tem de ter autorização do tráfico. Tem muito jornalista que fala que se for na favela vai ser metralhado. Mas se eu for no condomínio de luxo eu também vou ser parado e interrogado. É a segurança do local e aqui há também uma segurança. Fiz duas perguntas para você sobre tráfico e você relutou em responder. Por que é tão mais fácil para o rap falar mal da polícia do que do traficante? Eu falo mal deles, dos traficantes, sim. Mas, para mim, eles são colocados equivocadamente como o mal maior. O mal maior ainda é a corrupção. É muito mais trágico ver um político envolvido com o narcotráfico do que ver um jovem da favela com um fuzil na mão. O político corrupto mata muitos jovens. Elias Maluco e o juiz Lalau são bandidos nas mesmas proporções. O primeiro mata com o fuzil e o segundo mata com a caneta. Você não sente que poderia ser menos genérico e ir mais fundo em seu discurso anti-tráfico, fazendo denúncias mesmo? Meu discurso só é genérico em seu ponto de vista. As coisas que falo me posicionam perfeitamente. Para você, que não mora em comunidade de periferia, é difícil de entender. A convivência, o dia-a-dia, te tranformam em outra coisa, te fazem humanizar até traficantes. Você passa a enxergar outras coisas. Outro fato é que o tráfico sempre existiu. Está sendo mais comentado agora porque ganhou as grandes cidades. Começou a causar reflexo na família real, que não sabia que o seu filho fumava um baseado, que sua filha era viciada em cocaína e que o marido tinha dívidas com o traficante. Enquanto só o favelado morria com isso, ninguém comentava nada. Você está falando de tráfico de drogas, então vou te revelar um negócio que acontece por aqui. Minhas entrevistas, desde meu disco passado, são feitas em Cidade de Deus. Você sabia que quase todos os jornalistas que vieram aqui me pediram um baseado ou uma forma de arrumar cocaína para eles depois das entrevistas? Já tive até de brigar com alguns. Pô, cara, você está ajudando a financiar algo que você fala tão mal. Quem mais financia o tráfico de drogas são as elites. A favela não tem dinheiro para bancar tudo isso, não.

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