Músico francês Nicola Són aproxima Edith Piaf de artistas do Brasil como Anitta

'Piaf do Brasil' mescla a obra da diva francesa com ritmos como funk, choro e samba

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Por Danilo Casaletti
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Quem ouvir a canção francesa Padam Padam em Piaf do Brasil, novo álbum do cantor e compositor francês Nicola Són que a gravadora Biscoito Fino acaba de lançar nas plataformas digitais brasileiras, vai perceber que a melodia da famosa valsa gravada por Edith Piaf (1915-1963) ganhou o reforço de uma canção bem popular por aqui: a de Vai, Malandra, sucesso de Anitta.

O músico francês Nicola Són Foto: Gabriela Perez

A intervenção, feita com cuidado e elegância, está longe de poder ser considerada qualquer profanação ao que foi imortalizado pela diva francesa. A canção, na verdade, começa como um jongo que, lá na frente, vai encontrar o funk. O som que emula as batidas do hit de Anitta vem de um fagote, instrumento comumente utilizado na música clássica, tocado pelo músico Jeferson Souza. Com sonoridade mais grave e um timbre mais quente, ele se aproxima justamente da intenção do gênero carioca. “Pensei naquelas paredes de som que têm nos bailes funk do Rio de Janeiro que trazem aquela batida que vai entrando na sua cabeça”, explica Són. Quem o ajudou a aproximar o funk, choro, samba e outras bossas do cancioneiro de Piaf foi o músico Daniel Montes, do grupo carioca Casuarina. Montes também toca violão de 7 cordas em todas as nove faixas do trabalho. Gravado entre o final de 2018 e o início de 2019 no Rio de Janeiro, o álbum nasceu de uma conversa sobre a carreira de Són com Zeca Baleiro. O brasileiro sugeriu ao francês, que já havia lançado três discos no Brasil, que fizesse uma releitura da obra de um grande nome da música de seu país – a exemplo do que ele mesmo fizera com o cancioneiro de Zé Ramalho, em 2015.  “Zeca me alertou sobre o risco: ser comprado com o original. Piaf pareceu uma escolha natural. Aqui na França, quando uma nova cantora surge e os jornais apontam como ‘a nova Piaf’ é quase obrigatório que essa artista tenha que gravar algo dela. Foi assim com Zaz (ela fez uma versão de La Vie en Rose)”, diz Són, em entrevista feita pelo aplicativo Zoom. Són diz que para sua geração (ele tem 40 anos), o jeito de cantar e os arranjos das gravações de Piaf soam antigos – embora ela ainda mantenha incontestavelmente o posto de maior cantora de música popular francesa de todos os tempos. Cabe justamente aos novos artistas mostrar que esse repertório pode ser executado de novas e diferentes maneiras, sobretudo afastando-se da carga dramática que Piaf imprimia nas canções – até mesmo por ser difícil reproduzi-la. Além de atualizar os arranjos das canções, como fez Zaz, Són e Montes foram além. Pensaram em fazê-los como se Piaf fosse uma cantora brasileira. Nada mais justo que todos os músicos também fossem brasileiros. Há, entre eles, o pianista Nelson Freitas, que assina também as programações ao lado de Montes, e o multi instrumentista Carlos Malta, que toca flauta na faixa La Foule, que abre o álbum. Partindo dessa ideia, Non, Je Ne Regrette Rien virou um chorinho, com cavaco, bandolim e pandeiro. “Podia virar um samba também”, conta Son. Outro clássico, La Vie en Rose, tem ares de uma canção latina, gênero não menos influente na música popular brasileira.  “Na maioria das músicas foi preciso alterar o tom original para que coubesse a voz meio bolero, meio bossa nova que queríamos. La Vie en Rose resultou em um bolero bem suingado, com quatro violões no arranjo. A intenção era fazer algo mais intimista, para fugir totalmente da gravação original”, conta Son. Para Milord, cuja letra trata de um caso de amor entre uma prostituta e um homem de alta sociedade, em um ambiente que remete a um saloon americano, o ritmo escolhido foi o de uma marchinha puxada para o jazz americano, com o uso de instrumentos como caixa, conga, xekere e surdo. Em Cri du Coeur, Són divide os vocais com a jovem cantora paulista Iuna Tuane. Foi ela que entrou em contato com o artista francês. “Ela me mandou uma gravação de Eu Sei Que Vou Te Amar em francês. Sou meio difícil para vozes femininas, mas adorei o timbre da voz dela, super afinada. Ela cantava sem sotaque algum. Resolvi chamá-la para participar do disco”, conta. Na França, e nas plataformas digitais em países fora do Brasil, a versão que foi lançada é com Són cantando as mesmas canções, porém, transcritas para o português, feitas por ele em parceria com o jornalista brasileiro Igor Ribeiro. Sous Le Ciel de Paris, por exemplo, vira Sob o Sol do Recife. Ainda não há, por questões contratuais, previsão para que essa versão seja lançada por aqui. Sempre João. Nicola Són começa a discorrer sobre sua ligação com a música brasileira, na adolescência, citando João Gilberto – um clássico entre os estrangeiros que se aproximam da moderna música brasileira. Foi em uma coletânea de jazz que ele ouviu o baiano cantar Ligia. Ficou encantado, claro. “Era uma maneira totalmente diferente de abordar a música. Enquanto você tinha os metais do jazz, a batida forte da bateria, a voz potente do Louis Armstrong, havia alguém quase sussurrando. Isso ficou guardado em um cantinho especial na minha cabeça”, diz. Bom, essa é a história mais romântica do encontro entre Són e a música feita no Brasil. Porém, logo a versão correta se impõe: ele já havia ouvido alguém cantar em português um pouco antes, na infância, quando sua mãe comprou um disco de lambadas, gênero que figurou nas paradas musicais nos anos 1980. Entretanto, havia outras vertentes entre o pouco volume de João e a sensualidade dos vocais dos cantores de lambada. Logo depois, Són descobriria o movimento de música negra brasileira dos anos 1970, com Erlon Chaves, Wilson Simonal, Jorge Ben Jor e Antonio Adolfo. Em 2003, Són veio pela primeira vez ao Brasil, para passar dois meses no Rio de Janeiro e outros três em São Paulo para validar um estágio no consulado francês. Depois, passou cinco semanas viajando. Passou por Foz do Iguaçu, desceu o Rio Amazonas até Belém do Pará. Conheceu o Nordeste e aprendeu a tocar bossa nova no violão. Com tudo o que viu, veio a ideia de dedicar ao menos um álbum à música brasileira, ou melhor, misturá-la com a francesa. Acabou fazendo três: Parioca (2011), Nord Destin (2013) e Sampathique (2016). No bairro carioca da Lapa, em 2005, assistiu, entre um gole e outro de caipirinha, uma apresentação de Orlandivo, um dos donos do sambalanço. O veterano músico lhe apresentou seu produtor Henrique Cazes, que lhe abriu as portas para que lançasse Parioca, seu primeiro álbum. Nele, há uma versão em francês de Són para O Pato (Samba Dingue).  Em Nord Destin, o convidado é João Donato, na faixa Je Voudrais Me Divertir, uma versão que Són fez para uma canção de Lysias Ênio, irmão de João. O encontro entre ele e Donato foi facilitado por uma produtora que ele conheceu por acaso, em uma festa durante um fim de carnaval no Rio.  Casado com a carioca Paula Cristina, Són – que fala português fluente - espera pela melhora dos números da pandemia para que possa voltar à São Paulo a fim de gravar seu próximo disco.  O trabalho será em parceria com músico e produtor Marcio Arantes - de artistas como Maria Bethânia, Emicida e Mariana Aydar – e terá uma pegada pop. A faixa Amanhã Já Era, disponível nas plataformas, com inspiração também na música brasileira, sobretudo dos anos 1970, aponta por qual caminho o álbum deve ir.

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