Música medieval de Machaut, na voz de Milton Nascimento

CD 'Arte do Amor - Música de Machaut' reúne cantor e Madeleine Peyroux para interpretar músico do século 14

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Por João Marcos Coelho
Atualização:

O que têm em comum Milton Nascimento, Madeleine Peyroux, Mark Feldman, Brad Mehldau e Guillaume de Machaut, além da letra "M"? A paixão pela música. Principalmente a que é sintetizada na breve forma da canção. Setecentos anos os separam, mas o talento para o improviso e crença na música sem adjetivos, tecida com engenho e arte - estes são atributos basicamente semelhantes.

 

 

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O maior nome da chamada "Ars Nova" do século 14, Guillaume de Machaut (1300-1377) foi o maior compositor de seu tempo. Era ao mesmo tempo sacerdote da Igreja e poeta/compositor. Escreveu a Missa de Notre Dame, que muitos consideram a obra-prima da Idade Média, e motetos sacros; 250 poemas; e dezenas de canções (música e letra) profanas cantando o amor sob todas as suas formas, sobretudo aquele impossível dos cavaleiros nobres, nas cortes, pelas mulheres casadas.

 

 

Impossível também foi a ideia fundamental do dublê de maestro e produtor musical norte-americano Robert Sadin. Ele tem três gemas em seu currículo como músico e produtor: Gershwin Worlds, do pianista Herbie Hancock, So Many Stars, da soprano Kathleen Battle; e Alegria, do saxofonista Wayne Shorter.

 

A quarta, sem dúvida, é este tributo ao inglês David Munrow, um dos mais geniais intérpretes historicamente informados da música antiga (a chamada ‘early music’), morto aos 33 anos em 1976. Arregimentou uma penca de músicos notáveis e escreveu os arranjos e conduziu as gravações como quem rege com cuidado e sofisticação uma orquestra sinfônica (o que ele também faz).

 

Arte do Amor - Música de Machaut acaba de ser lançado pela Deutsche Grammophon e chega ao Brasil em maio. Reúne músicos de formação erudita que se dedicam às músicas contemporâneas, como o violinista Mark Feldman e o violoncelista Charles Curtis; cantores populares refinados como Milton e Madeleine Peyroux; músicos de jazz inovadores, como o pianista Brad Mehldau, de novo Mark Feldman e o violonista brasileiro Romero Lubambo; e na percussão o refinamento do brasileiro Cyro Baptista, há 30 nos EUA.

 

Todos esses artistas de experiências, etnias e carreiras díspares praticam, em seu trabalho, o credo artístico de David Munrow: ao lidar com Machaut e outros compositores da Idade Média e Renascença, ele combinava a maestria artística com uma capacidade de recriação notável.

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Pode parecer simples, mas não é. Como encarar canções em que o que há escrito é apenas a linha melódica embaixo da letra? Pois Machaut, entronizado como o primeiro grande compositor que se assumiu como tal, dizia ser "artesão da antiga e nova forja". Ou seja, obedecia teologicamente à Igreja, mas a desafiava na condição de compositor. Dividiu os tempos em dois, em vez dos três permitidos (porque representavam a Santa Trindade); estabeleceu a polifonia nos motetos e na Missa de Notre Dame. Mas, como também era costume em sua época, anotou apenas o essencial: a sucessão das notas e os versos. O resto ficava por conta do hábito dos músicos do século 14. Não há como, portanto, reencontrar o som de 700 anos atrás.

 

"Estas canções não indicam acompanhamento, nem há sugestão de música adicional. Só a melodia e a letra", diz Sadin no folheto do CD. "Criei, então, o acompanhamento harmônico, os contracantos e os solos instrumentais" Ajudado pelo produtor francês Yves Beauvais, modificou as letras, "escritas num francês medieval que só os especialistas entendem hoje". Sobre os músicos, Sadin diz que chamou "aqueles que mantêm, determinados, sua visão pessoal da música", independentemente do sucesso popular.

 

Entre tantas estrelas, se há uma acima das demais, ela é com certeza Milton Nascimento. Ele abre o tributo com Amor Sem Fim; estabelece o clímax na sexta faixa, com a letra que escreveu para Tu, Meu Sonho Vivo; e encerra o disco num hipnótico scat com efeitos de eco, no improviso Evocação.

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