PUBLICIDADE

Música e cidadania ganham a sala de aula

Numa das regiões menos assistidas do País, a Baixada Fluminense, uma escola oferece cursos de música como forma de transmitir noções de cidadania. Mas falta patrocínio

Por Agencia Estado
Atualização:

Quem passa em frente do número 536 da Rua Duque de Caxias, no bairro de Vilar dos Teles, em São João de Meriti, Baixada Fluminense, percebe que o cotidiano ali é diferente das outras casas da região, a mais densamente povoada do País, mas também uma das mais pobres e desassistidas. A primeira impressão vem da fachada, pintada de amarelo vivo e roxo, mas o que atrai é a música lá de dentro: choros de Pixinguinha, Nazareth e Paulinho da Viola, ou sambas de Cartola, Noel Rosa ou Chico Buarque. Quem toca são os alunos da Escola de Música da Associação Movimento de Compositores da Baixada Fluminense, projeto de Bernard von der Weit, militante do grupo Ação Popular (AP) nos anos 70, quando trocou faculdade e debates teóricos pelo contato direto com a realidade que pretendia mudar. São meninos e meninas entre 9 e 17 anos, aprendendo violão, cavaquinho, instrumentos de sopro e percussão, sozinhos e em grupo, sem esquecer teoria e leitura musical. Mais que música, Von der Weit quer passar noções de cidadania. "O caminho é conhecer nossa riquíssima cultura. Ninguém planeja o futuro sem conhecer seu passado. Esses meninos sequer sabiam da existência de nossa música popular, só recebiam informações massificantes e adoram descobrir um refinamento musical que nem sonhavam possuir", ensina Weit. Ele foi para São João de Meriti em 1974, na época da prisão de seu irmão, Jean-Marc von der Weit, ex-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), trocado pelo embaixador suíço Charles Elbrick logo depois. "Nessa época, a esquerda discutia seus caminhos. Larguei os debates teóricos e o confronto para conhecer o povo pelo qual dizíamos lutar." São João de Meriti não foi um acaso. O município, uma cidade-dormitório sem escolas ou opções de trabalho para os jovens, tinha como bispo dom Adriano Hipólito, líder da Igreja Católica progressista e da resistência à ditadura militar. Von der Weit foi dar aulas em sindicatos e escolas noturnas e levava a música como um hobbie. Entre uma e outra atividade casou-se com Lena de Souza, professora do Estado, desiludida com as condições de trabalho. "A gente fazia de conta que ensinava e os alunos fingiam que aprendiam", conta Lena. "Há quatro anos, criamos a escola de música do Movimento dos Compositores da Baixada, que Bernard havia fundado nos anos 80. Hoje temos 70 alunos em quatro turmas e mais de 200 ex-alunos, alguns músicos profissionais." Viabilizar a escola foi fácil. Difícil foi convencer pais e professores a matricular os alunos. "As professoras diziam ser impossível ensinar música a quem não aprendia nem a matemática básica. Os pais não viam com bons olhos seus filhos se dedicarem à música, profissão difícil e, segundo eles, mal paga", lembra Lena. A primeira turma tinha meia dúzia de alunos. "Para mim é uma questão de princípio, desde o tempo de músico amador. Não importa tocar ou dar aula para 5 ou 500 pessoas, a qualidade é a mesma", teoriza Von der Weit. "Com o tempo, os alunos vieram e hoje temos um número próximo do ideal. A escola agora precisa melhorar qualitativamente." Aí começam as dificuldades. Há dois anos, o Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) deu R$ 153 mil, para a compra e reforma da sede da escola e o dinheiro do aluguel, doações de 30 amigos do casal, virou o salário dos professores. "Ainda falta muito", minimiza Lena. "Os instrumentos foram comprados ou doados, mas precisamos de uma biblioteca, fundamental para a formação dos músicos e do cidadão", diz ela apontando para os livros amontoados em cima de um piano, a mais recente doação. Problemas de disciplina praticamente não existem, embora as cobranças sejam constantes. "Quem chega aqui para a aula sem estudar seu instrumento, é chamado a se explicar. Mesmo assim, só tive um caso incontornável, de um rapaz de 16 anos que se recusou a seguir as normas da escola", conta Weit. Ele até compreende que os meninos procurem a escola para aprender rap, funk ou axé music, mas diz que lá o estilo é outro. "Nada contra, mas isso eles podem aprender vendo televisão. Aqui, ensino nossa música, nossas raízes. Essa é a nossa militância, pois só assim eles aprendem a cidadania." É preciso se abstrair da música, da temperatura agradável dentro da casa e do entrosamento comovente entre os alunos e os professores Amarildo, Ronaldinho e Coquinho, para lembrar das dificuldades que a escola vai enfrentar nos próximos meses. "O convênio com o governo do Estado, que paga a manutenção da escola, vai acabar e não temos outro patrocinador", adianta Weit, confiante em que algo vai acontecer. Ele aprovou, na Lei Rouanet, um projeto de R$ 200 mil para levar o projeto de São João de Meriti para Feira de Santana na Bahia, e Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. "O trabalho nessas cidades é mais recente, mas agora meu dinheiro acabou e não posso viajar e promover os festivais de compositores nessas regiões." Mesmo assim, o astral da escola está lá em cima. Os meninos e meninas têm aulas de teoria musical, instrumento e execução em grupo duas vezes por semana e ainda recebem reforço escolar porque a maioria tinha problemas nessa área. "Hoje as mães e professoras vêm contar como eles melhoraram o comportamento em casa e o desempenho na escola. Podem não se tornar músicos, mas conheceram um mundo diferente e querem aprender mais", comemora Lena. Essas reuniões ficam ainda mais animadas no segundo domingo e na última sexta-feira de cada mês, quando ocorrem as rodas de samba e de choro da escola. Alunos trazem a família. "Quem quiser chegar ou dar uma contribuição para a escola, é só telefonar (21 2752-8876) que a gente tem o maior prazer em receber", convida Weit.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.