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Moreira da Silva, o rei do samba de breque

Por Mauro Dias

Por Agencia Estado
Atualização:

Foi-se o último malandro. O cantor e compositor Moreira da Silva morreu hoje de manhã. A causa da morte foi falência múltipla dos órgãos. Moreira tinha 98 anos. Antônio Moreira da Silva nasceu no dia internacional da mentira: 1.º de abril. Por profissão, concluía, teria de fazer graça. Rir do mundo. Ou, contando melhor: Moreira da Silva nasceu num dia 15 de junho. Depois, mudou a data para 1.º de abril, piada sua que virou verdade. Nos últimos anos, morava na frente do Cemitério do Catumbi, no pé do Morro da Coroa - poderia ser "do Coroa", brincava. "Moro aqui para dar menos trabalho aos que forem me levar para a última morada", dizia, olhando da janela do apartamento simples, ocupado por gente de classe média baixa. "Você disse que queria fazer foto? Queria ou quer? Se queria, fique querendo. Se quer, eu vou trocar de roupa" - diversão: criticar vícios de linguagem dos interlocutores. Andava até o quarto para vestir a indumentária de malandro, personagem mítico de um Rio de Janeiro que já não existe há meio século mas que ele ajudou a consolidar: terno de linho (obrigatoriamente S-120, o melhor) branco, camisa colorida, eventual gravata escura, lenço saindo do bolsinho superior do paletó, lado do coração, chapéu panamá, com faixa escura, de cetim, sapatos brancos, eventualmente bicolores. Transformava-se. Fazia valer aquilo da identidade secreta que os quadrinhos exploram: ao vestir o uniforme do malandro, virava - breque - Kid Morengueira, pronto para defender as mocinhas e desacatar os rufiões. O chapéu escondia a calva; abria-se o sorriso, abriam-se os braços no gesto anunciador da intervenção falada, cruzava-se a perna esquerda sobre a direita. Moreira da Silva remoçava 30 anos e cantava para o privilegiado que estivesse próximo: "Na subida do morro me contaram..." Que teria comprado de Geraldo Pereira por um conto e 300. Nunca confirmou, nem desmentiu. Desconversava, breque. Trabalho e regalias - Moreira da Silva nasceu na Tijuca, na zona norte do Rio, em 1902. Com 11 anos, foi trabalhar, primeiro numa fábrica de meias, depois noutra, de cigarros, em seguida como chofer de praça, mais adiante, funcionário público, como motorista de ambulância da prefeitura carioca. Trabalhou até a aposentadoria, embora com regalias de artista: assumiu o cargo público em 1926, quando já era relativamente conhecido nos meios seresteiros e já aparecia, vez por outra, em programas de rádio. Podia faltar, às vezes, portanto; ou aparecia um amigo disposto a cobrir seu turno, em troca da honra de haver prestado favor ao companheiro famoso. O fato é que Moreira da Silva sempre teve emprego fixo. Não confiava na música para sobreviver. Constituiu família ao casar-se, em 1928, e ficou casado por 50 anos. Orgulhava-se de dar suas voltinhas - tinha sempre, nas viagens, uma "sobrinha" que o acompanhava. Quase nunca a mesma "sobrinha" - mas manteve o casamento. Também nunca foi dado a excessos: fumou durante pouco tempo e abandonou. Bebida, pouquíssima, socialmente, raramente. Virar noite na farra, jamais. "Malandro é isso", explicava. "O malandro de verdade é o cara que entra na boate, escolhe a dama, espera que o cara que está com ela fique bêbado e colhe os frutos". Por coisas assim, algumas vezes foi Moreira da Silva chamado de malandro de fancaria: tudo nele seria marketing, fruto de imagem construída com persistência e consciência. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. Já foi escrito que aquele malandro de terno branco nunca existiu, mas vejam as fotos de contemporâneos de Moreira tão díspares quanto Noel Rosa, Geraldo Pereira, Madame Satã. Existia o figurino. Moreira da Silva sobreviveu aos outros, tornou-se o dono do tipo. Chico Buarque utilizou-o em sua Ópera do Malandro. Mas explicava que a roupa - exatamente igual à usada por Moreira da Silva - se inspirava tanto no cantor quanto na entidade do sincretismo religioso afro-católico Zé Pelintra: um malandro, ele próprio, palavra usada com o mesmo sentido aplicável a Moreira. Esse malandro não tem nada a ver com aquele que não trabalha, indolente, desonesto. O malandro de Moreira é outra coisa: veste-se bem, tem boas maneiras, fala corretamente, não perde a pose, não toma porre, não abusa da confiança de ninguém, defende as causas justas, é amigo das mulheres e companheiro apenas de seus iguais; é respeitado pela elegância, pela verve, pelo conhecimento da vida que alardeia sempre; evita brigas, não implica, nunca insulta. "O bom malandro é o que ri por último" costumava dizer o cantor. Ele gravou pela primeira vez em 1931, pela Odeon, cantando Ererê e Rei da Umbanda, pontos de macumba de autoria de alguém chamado Amor. No rótulo do disco aparecia: intérprete, Antônio Moreira Mulatinho - conseguiu dizer não a outra proposta da gravadora, que pretendia chamá-lo de Mulatinho da Assistência. Lembrando, as ambulâncias eram chamadas de assistências. Mas só três anos e dois discos depois foi fazer sucesso, com o samba Arrasta a Sandália, de Aurélio Gomes e Baiaco. Para o carnaval de 1933, gravou É Batucada, de Caninha e Visconde de Bicoíba, vencendo o concurso oficial de músicas carnavalescas do Rio. Para o do ano seguinte, gravou Agora é Cinza, de Bide e Marçal (que Mário Reis já havia gravado, mas como não gostava de participar de concursos, não foi defender a música; Moreira aceitou a empreitada e ganhou mais um carnaval). O sucesso não parou. Alguns pontos: em 1935, já Moreira da Silva, brilhou com Implorar, de Kide Pepe, Germano Augusto e J. Gaspar. Por isso, foi convidado a atuar no prestigioso Programa do Casé, da Rádio Philips. César Ladeira, outro apresentador de rádio importante, apelidou-o de Moreira da Silva, o Tal, depois de ouvi-lo no Cassino Atlântico. Fez convite e Moreira mudou-se para Rádio Mayrink Veiga. Samba de breque - Foi em 1937: gravou Jogo Proibido, de Tancredo Silva, Davi Silva e Ribeiro Cunha, e improvisou nos intervalos um canto mais falado do que cantado - afinal, o tal samba de breque. Moreira repetiu o recurso em outras gravações e foi definindo o estilo - em Acertei no Milhar (Etelvina, acertei no milhar), de Wilson Batista e Geraldo Pereira, de 1938, e Amigo Urso (...ao leres esta/ Há de te lembrares/ Daquela grana que eu te emprestei/ Quando estavas mal de vida/ E nunca te cobrei), de Henrique Gonçalves, de 1939; depois, em Fui a Paris (dele e de Ribeiro Cunha, 1942), Dormi no Molhado (dele só, 1943), Que´est-ce Que Tu Penses (de Francisco Moreno) e Conversa de Camelô (T. Silva e S. Valença). Moreira da Silva diz que o samba de breque foi invenção dele, embora alguns estudiosos vejam o breque em intérpretes mais antigos, como Mário Reis. Seja como for, quem marcou o estilo foi ele. Samba de breque é Moreira da Silva, Moreira da Silva é samba de breque. Tome-se o novíssimo CD Sincopando o Breque (gravadora CPC-Umes), de Nei Lopes: são composições de Nei que remetem diretamente a Moreira, embora não sejam cópia da música dele: é que, no samba sincopado, no breque, não há como escapar da referência. Porque Moreira não se trata apenas de interpor falas, comentários, entre dois versos musicais, no breque (do inglês break, parada, mas de uma empostação, uma gestualística; o breque, em si, virou um estilo, com pontuação própria, pausas em determinados momentos, uma necessária carga de humor, a utilização do duplo sentido, etc). Portanto, não se trata de "quem inventou". Jorge Veiga também cantava sambas de breque; foi apelidado de Caricaturista do Samba; antes dele, Luís Barbosa; Moreira nunca foi caricaturista: seu personagem foi aceito como real, correspondendo, com certeza, a aspirações do imaginário popular. Mais: todos aproveitavam o intervalo entre dois versos para incluir a fala, e Moreira fez o samba parar para falar. A pausa incorporava-se à composição. Moreira sabia dos antecedentes e nunca fez segredo do fato. No fim dos anos 50 gravou, com produção de Aloísio de Oliveira, o elepê O Último Malandro, uma antologia de sucessos que bisava Na Subida do Morro, dele e de Ribeiro Cunha. Em seguida, criou, com Miguel Gustavo, um alter-ego, Kid Morengueira, cujo maior sucesso foi O Rei do Gatilho, de 1962. Seu sucesso durou até o fim dos anos 70, quando foi convidado, por Chico Buarque, a participar das gravações do disco com a trilha sonora da Ópera do Malandro. Homenagem - Do fim dos anos 80 ao início dos 90, apresentou-se ao lado de Jards Macalé, que vê nele um dos mais geniais inventores da música popular. Em 1992, Moreira da Silva foi homenageado pela escola de samba Unidos de Manguinhos. Em 1995, chegou a gravar uma faixa com o rapper Gabriel, o Pensador. Esse sim foi um golpe de marketing vagabundo. Moreira da Silva, vivendo de pensão exígua, de pouco mais de R$ 1 mil, mais alguma coisa em direitos autorais (embora nunca tenha dado o braço a torcer: "Estou no lucro, sou dono do meu apartamento", dizia), aceitou a comunhão com o pop que detestava, um pouco também por bravata: afinal, falar por falar em música, ele falava antes. Ainda em 1995, gravou um disco engraçadíssimo, com Dicró e Bezerra da Silva: Os Três Malandros in Concert, uma gozação com os três tenores - Pavarotti, Domingo e Carreras. No ano seguinte, sairia sua biografia: Moreira da Silva - O Último dos Malandros (Editora Record), escrita pelo jovem baiano (na época, com 23 anos) Alexandre Augusto. Um livro simpático e bem intencionado, mas superficial. Seus discos originais não foram relançados em CD. Há cinco antologias, que se repetem, e o original 50 Anos de Samba de Breque, lançado em 1989, além dos Três Malandros.... A maior das reivindicações recentes de Moreira da Silva era a inclusão de seu nome do Livro Guiness: Eu sou o cantor mais antigo do mundo, assegurava.

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